segunda-feira, 12 de agosto de 2019

Crônicas de um Velho Chefe Escoteiro. Eu tive uma barra de duas lonas amarela desbotada...




Crônicas de um Velho Chefe Escoteiro.
Eu tive uma barra de duas lonas amarela desbotada...

-... Era uma vez... Uma barraca de duas lonas, amarelada e que serviu de abrigo por muitos e muitos anos a uma Patrulha escoteira.

- Eu tive uma barraca de lona, amarelada, desbotada, não era uma barraca inteira, era apenas a metade, uma lona e me nomearam responsável pela sua manutenção. Quando fiz a passagem dos lobos Romildo meu Monitor me nomeou responsável por ela. Fiquei eufórico, cheguei em casa contando para toda a família que eu era responsável por uma barraca, isto é, metade de uma barraca. Candinho passou para os seniores e nada mais que um substituto na Patrulha para receber o encargo. Dormi algumas vezes em uma quando lobinho, mas era diferente. Era grande e precisava do Balu e mais quatro Primos para montar.

- Eu tive uma barraca de lona, amarelada, desbotada, não era uma barraca inteira, apenas a metade, uma lona e fiquei emocionado com a responsabilidade. A Patrulha tinha três delas. Herança militar do 6º Batalhão de Infantaria. Foram feitas para dois praças e cabiam folgadamente três escoteiros. Só eu e o Wantuil éramos “donos” de uma. Gordo, o chamavam de “Meio Quilo” acharam que eu e ele ficaríamos bem em uma. O Monitor me disse que eram novas, foram doadas em janeiro e estávamos em outubro. Ela ficava em minha casa. Era minha responsabilidade. Uma vez por semana eu a colocava no sol para não embolorar. Ensinaram-me a manter a lona perfeita impermeabilizada a prova de chuva, apenas com um pedaço de couro de boi cru. Deu resultado. Quantos temporais e chuvas torrenciais ela aguentou. Seu Lucinio do Curtume sorriu quando fiz o pedido. Em pose militar me deu sempre alerta e mandou Saramango buscar um belo pedaço de couro ainda mole e me ensinou a usar. A cada cinco meses lá estava eu, recebendo o belo sorriso do seu Lucinio. Era um tempo que fazíamos questão de fazer tudo bem uniformizado... Do sapato ao chapéu!

- Eu tive uma barraca de lona, amarelada, desbotada, não era uma barraca inteira, apenas a metade, uma lona e fiquei emocionado com a responsabilidade. Eu e o Wantuil éramos peritos na armação. Treinamos a armar em menos de cinco minutos. Um pé lá e outro cá e já tínhamos entrado no mato, cortado os varões e espeques. Usávamos o cipó Titica, maleável, o melhor para estes casos. Só uma vez pagamos o pato pela pressa, um temporal e armamos de qualquer jeito, uma ventania e ela foi ao chão. Mas pergunte a ela, minha barraca de uma lona (duas com a parte do Wantuil) quantas tempestades ela nos salvou, quantas enchentes, quantos vendavais.

- Eu tive uma barraca de lona, amarelada, não era uma barraca inteira, apenas a metade... Naquela época para nós não existia “outras”. Bangalô? Canadense? Iglu? Tubular? Geodésia? Deus me livre! Só vim a conhecer nos primeiros cursos que fiz. Dizem que tem algumas que você aperta um botão e ela enche de ar e aos poucos vai tomando forma. Lá dentro tem camas, armários só não tem WC. Aí é querer demais. Mas tem graça isso? Bem se for fazer Camping tem. Mesmo eu que fui campista por anos não sei se iria gostar dela. Sem fazer nada? Só dormir? Bah! Acho que não é minha praia. Boa mesmo, prá lá de “mais de boa” era a minha de duas lonas. Uma vez a do Gentil encheu de lama e dormimos cinco em uma! Muito? Deu para o gasto.

- Eu tive uma barraca de lona, amarelada, desbotada, não era uma barraca inteira, apenas a metade. Se você já dormiu em uma delas sei que sente saudades. Bastava tirar um cipó, dois pedaços de madeira de metro e meio e seis espeques e elas ficavam em pé. Não esquecer do canal em volta e por baixo da lona e uma saída na parte mais baixa. Disseram-me que chovendo e abrindo a porta se molha todo interior. Não sei não. Comigo não aconteceu. Meu Monitor me ensinou bem a abrir a porta e sair e entrar em um dos lados. Ela não tinha forro de chão. Forro? Bah! Para que se tinha capim a vontade? Folhas secas caídas no chão e eram um verdadeiro colchão para dormir. Neco Brinco de Ouro nosso sub me disse para comprar dois sacos de linguagem ou estopa e costurar um no outro. Depois era só encher de capim e teria uma cama melhor que tinha em meu quarto.

-  Eu tive uma barraca de lona, amarelada, desbotada, não era uma barraca inteira, apenas a metade... E para transportar? Simples demais. Bem dobrada fazia a volta na mochila e junto à capa de chuva se prendia com cabos firmes em presilha. Peso? Uma ninharia, bem menos que dois quilos cada lona. Armar era supimpa. Diziam naquela época que demorar mais de cinco minutos para armar era coisa de Pata-tenra! Em jornadas ou caminhadas longas se chovia elas eram uma “pá na roda”. Servia para um descanso em baixo de uma árvore, servia para um travesseiro nas paradas de descanso, e se fosse demorar porque não armar? Cinco minutos! Isto mesmo. Soube de uma patrulha que armava em dois! Bem eu e Wantuil treinamos muitos. Olhos fechados, deitados, com uma das mãos amarradas...

- Eu tive uma barraca de lona, amarelada, desbotada, não era uma barraca inteira, apenas a metade... Quando fiz treze anos notei que elas começaram a embranquecer e perder a permeabilidade. Qualquer chuvinha e a lona deixava passar pequenos pingos e ficavam enxovalhadas demais. Acho que foi Lomanto Cobra Cega motorista de caminhão quem nos ensinou como fazer. Dirigia um caminhão “Fenemê”, FNM, ou melhor, Fábrica Nacional de Motores. Caminhão brasileiro para ninguém botar defeito. Chamou Zequinha o Monitor e disse: - Se o couro não resolve usem sebo de boi. Ele vem duro como pedra. Coloquem em uma vasilha e deixar virar mel. Pegue uma escova de engraxar sapatos, vai molhando e passando na barraca. Depois deixe secar, mas não no sol. Na sombra. Faça isto quatro vezes espaçadamente. A lona nunca mais vai deixar a água de chuva passar!

- Dito e feito. Foi supimpa. A gente sorria e partia para nossos acampamentos de fins de semana mais tranquilos. E eis que em uma reunião um Fenemê do 6º Batalhão de Infantaria parou na porta do grupo. – Na Boleia o Chefe João Soldado e o Tenente Juventino. - Quem vai acampar? Perguntou o tenente... E um cabo malcriado gritou – Ou vem ajudar ou vou levar esta M... De volta! Corremos todos saltando de uma só vez na carroceria do caminhão. Dezenas de barracas, cantis, mochilas, canecas, material de sapa tinha lá dentro tudo que a gente precisava para nossa intendência. Chefe João Soldado sorria. Agradeçam ao Tenente Juventino e ao capitão Barbosinha. Eu agradeci também a Deus... - Eu tive uma barraca de lona, amarelada, desbotada, não era uma barraca inteira, apenas a metade... Que saudades!