sábado, 8 de fevereiro de 2020

Crônicas de um Chefe Escoteiro. Minha saudosa Cascavel da pele vermelha.



Crônicas de um Chefe Escoteiro.
Minha saudosa Cascavel da pele vermelha.

... Às vezes conto tanta coisa inverossível que fico perplexo com tantas situações complexas passei na minha vida escoteira. Dizem que sou um eterno zombeteiro de coisas sérias, mas pense comigo, não dizem que o proverbio: “Quem conta um conto aumenta um ponto” me da o direito de enviar para a Escoteiro do Brasil uma linda e simpática cascavel? Me disseram a boca pequena que lá tem um ninho delas! Rarará!   

        Não se enganem. Foi mesmo uma grande amiga. Não falo do ser humano, por favor! Falo de uma cascavel que morava nas Colinas do Pastor. Acho que foi em um inverno rigoroso que a conheci. Foi assim subitamente e não esperava. Andando na mata espessa fiquei preso com o pé direito entre dois galhos secos. Tentava sair e não conseguia. Não era longe do nosso campo de patrulha. Porque saí só? Quer saber mesmo? Fui procurar um lugar mais calmo para falar com o Miguel. Risos. Acho que vocês sabem quem é o Miguel e não dá para levar companhia. Estava eu lá olhando a folhagem de uma bela Aroeira Pimenteira, enorme, parecendo ter mais de duzentos anos de idade quando ouvi o chocalho. Nem deu tempo para fazer os “entretantos”. Sabia que o chocalhar de um chocalho é pernas para quem vos quero. Não deu outra dois passos e fiquei preso com o pé direito e o esquerdo ali se oferecendo para uma mordidinha que iria me fazer feliz para sempre lá no céu.

         Eu sabia que muitos falam mal das cobras. Dizem que são animais traiçoeiros e devemos ter o máximo de cuidado. Eu nunca tive medo delas. Sabia que só nos atacam quando se sentem ameaçadas ou algum infeliz pisa em cima delas. Até aquele dia tinha visto inúmeras Cascáveis. Nossa patrulha tinha um convenio com o Instituto Butantã em São Paulo. Eles nos mandavam as caixas de madeiras apropriadas e era só entregar ao Chefe da Estação da Vitória Minas em Governador Valadares e ele enviava. Em troca nos mandavam soro antiofídico que era doado para o hospital local. A Cascavel sempre foi a mais temida. Seu chocalho arrepiava os mais valentes dos Escoteiros e até o Zé do Monte quase morreu quando foi picado e olhe, estava com um trinta e oito, um fuzil Mauser, duas facas e dois punhais. Não morreu, pois o humilde Zé tinha uma reza “braba”. Portanto vamos dar um crédito as Cascavéis. Elas avisam e muito. Só um idiota e um imbecil não foge do seu chocalho.

       Falando em chocalho dizem que a gente pode saber quantos anos ela tem. Comentam a boca pequena que cada anel, ou melhor, cada guizo é formado quando ela troca de pele. A pele sai no sentido da cabeça para a cauda e ai, uma parte fica presa formando um dos anéis. Comentam também que a vida útil (ou inútil para quem já foi mordido e não foi desta para melhor) troca de pele três ou quatros vezes por ano. Portanto uma cobra com nove anéis no chocalho tem provavelmente entre dois e três anos. E prevendo que tem entre 13 a 14 anos de vida ela vai trocar de pele muitas vezes e vai morder os indesejáveis por muito tempo. Mas vamos com a história da minha Cascavel da Pele Vermelha. Ela sim já me avisara que estava ali. Que eu me mandasse rápido pela trilha que tinha vindo. Mas o pé direito preso e ainda colocando as calças no lugar certo só me cabia rezar. Foi então que um Sapinho-cururu passou por mim e não viu a linda cascavel de bote armado. Bela refeição ela comeu.

         A cobra se esticou toda. O pobre do sapinho tentava mesmo vivo sair da barriga dela. Não conseguia. Fiquei com pena do sapinho. Tão miudinho e servindo de lauta refeição para Dona Cascavel. Consegui me desvencilhar e me mandei dali. Uma hora depois vi de novo a Cascavel da pele vermelha na porta do nosso campo de patrulha. Todos gritaram – Mata! Mata! E só vi o tripé de bastões balançar e servir aos valentes patrulheiros. Ela é claro deu no pé ou no rabo não sei. Passou meia hora e lá estava ela de novo a me olhar. Não olhava para nenhum dos big boys Scouts, só para mim. Caramba, pensei. Será que se apaixonou? Eu namorar uma Cascavel? Eis que neste interim vai a passos de tartaruga uma grande e deliciosa lesma. Pluf! Uma bocada e lá foi a lesminha para o fundo do poço da Cascavel.

           Estava agora entendendo a jogada da Dona Cascavel da pele vermelha. Ela sabia que ao meu lado um lauto almoço sempre aparecia. Fazer o que com sua escolha em me ter como Mestre Cuca Cobreiro? Melhor explicar a patrulha e deixá-la vaguear pelo campo. Ela não ia morder ninguém. Foi à conta. A Cascavel da pele vermelha virou o xodó da patrulha. Alguns até brincavam de pique esconde com ela. Boca Larga subiu em uma arvore e gritou – Você não me pega! Você não me pega! Coitado, só viu quando a Cascavel da pele vermelha começou a se enroscar no troco e ele pulou de uma altura de mais de dez metros. Nada demais. Apenas uma luxação que nós grandes socorristas que éramos o tratamos melhores que os médicos importados do estrangeiro.

          Durante os quatro dias de campo nossa amiga permaneceu no acampamento. Quando fazíamos o sinal Escoteiro para ela, em troca balançava seu chocalho. No último dia vi que ela tinha engordado e já nem ligava mais para os girinos, sapinhos e outros bichos e insetos e só queria dormitar na minha barraca. Ficava lá horas e horas e até acostumei com ela à noite dormindo no pé da minha cama. Isto mesmo. Uma cama! Naquela época sempre fazíamos uma para nós. Época boa, bom recordar. Mas enfim, o último dia chegou. Formada a patrulha em frente onde estava arvorada a bandeira, chegou a hora do adeus. – Lobos! A Bandeira em saudação! No pé da arvore onde estava arvorada a bandeira a Cascavel da pele vermelha acompanhava a cerimonia. Tudo desmontado e já ensacado nas bicicletas era se despedir do local e se mandar. Seriam mais de vinte e cinco quilômetros a percorrer. Saindo às cinco da tarde no mais tardar às oito da noite estaríamos em casa.

           Olhei para trás e vi a Cascavel tentando nos acompanhar. Não deu. Pegamos uma descida que dava para fazer até quarenta quilômetros por hora. Nem lembrava mais da Cascavel da pele vermelha e na segunda quando voltava da escola uma surpresa. No portão da minha casa lá estava a minha querida amiga a Cascavel da Pele vermelha. Como ela achou a minha casa não sei explicar. Expliquei a mamãe e ao papai como ela era. Minhas duas irmãs sorriram. Para dizer a verdade nunca dei alimentação para ela. Morou conosco por muitos anos. Seu Zé Carapinha nosso vizinho foi quem comentou que outra cascavel estava junto a ela. Partiram em um domingo de verão. Tempos depois passei a receber a visita dela e seus novos familiares. Uma dezena de cascáveis ali na porta de casa chocalhando como se estivessem nos cumprimentando. Fizeram isto por muitos anos até que nunca mais a vi. Por onde anda? Se estiver aqui no bairro é melhor esquecer. Todos tem medo dela. Se alguém a visse enquanto não a mandasse para a terra das Cobras Mortas não ficaria satisfeito.

          Cobras. E quem tem medo delas? Eu nunca tive. Sabia como evitar, como pegar, como correr mesmo com as calças na mão saindo em disparada do Miguel. Faz parte da vida de nós Escoteiros acampadores. De vez em quando sonho com ela, trocando a pele, engolindo um sapinho que gemia para sair de sua barriga. Sonho bobo não? É de vez em quando sinto saudade da minha amiga a Cascavel da pele vermelha. Que onde estiver que esteja feliz e que viva para sempre se é que não se reencarnou novamente. Risos!