Crônicas de
um Chefe Escoteiro.
Eu gostaria
de poder morrer em paz!
Prefácio:
- Palavras? Sim. De ar e perdidas
no ar. Deixa que eu me perca entre palavras, deixa que eu seja o ar entre esses
lábios, um sopro erramundo sem contornos, breve aroma que no ar se desvanece.
Também a luz em si mesma se perde. (Octavio Paz).
Há muitos e muitos anos eu
li um romance de ficção, cujo nome não me lembro e se não me engando foi
escrito pelo escritor Isaac Asimov. Não vou contar a história, mas sim uma
parte que me chamou atenção. No futuro os cientistas inventaram uma fórmula de
sangue humano, que aplicada daria sobrevida por muitos anos aos habitantes do
planeta. Em pouco tempo ninguém mais morria e os cemitérios foram abandonados e
extintos. Se alguém resolvesse não mais fazer a transfusão quando morria era
cremado.
Durante mais de quinhentos
anos a terra praticamente ficou estável. Como já havia pessoas com trezentos
quinhentos ou mais anos o interesse da perpetuação da espécie diminuiu e praticamente
as crianças não existiam mais. A história comenta o novo estilo de vida, de
homens e mulheres que a cada centena de anos se casavam novamente ou os que resolviam
terminar suas vidas já velhos e poder morrer em paz.
Eu hoje estou entrando nos
78 anos. Não ambicionaria poder viver muito. O choque de gerações é enorme. Meu
passado era de dizer sim senhor, beijar as mãos dos tios e avós e jogar bolinha
de gude, soltar papagaios com o prazer de vê-lo voltar molhado do céu. Tive o
orgulho de fazer um escotismo aventureiro e aprendi com meus amigos de patrulha
e de tropa a fazer fazendo longe de adultos. Olho a juventude de hoje, tão
diferente daquela do passado. Meninos e meninas com um celular na mão, que nem
se dão conta que tem pessoas a sua volta. Os cumprimentos para eles não existem
e suas vidas resumem a ficar blogados, ir a escola, ter em seu quarto a
parafernália eletrônica e a noite correr para as baladas.
As roupas dos jovens de
hoje são de marca. Quando sai um novo estilo de tênis, de camisetas sem contar
o indefectível boné virado para trás eles vibram. Um Chefe outro dia me disse
que bússola, ler mapas, percurso de gilwell ou mesmo sinais de fumaça ou de
pista é passado. Para isto existe o GPS. Ele ria quando me disse que as
barracas modernas se armam com um simples apertar de um botão. Disse também que
seus jovens esperam o novo skate voador, pois assim não irão mais andar a pé.
Brincadeiras a parte é uma
verdade que o mundo mudou. E como mudou. Eu costumo ficar deslocado. Hoje na
minha caminhada em um centro esportivo próximo a minha casa, uma jovem no
celular falava alto sem se preocupar com quem estava a sua volta. Brigava e
discutia com seu namorado e ficou mais de uma hora com o mesmo assunto. Acredito
que não me viu nem os demais que foram ali praticar exercícios. Meus netos quando
me visitam ficam na sala ou na varanda horas e horas com seu celular. Em todos
os lugares vemos todos eles com seus celulares. Quantas mudanças aconteceram.
Eles estão certos e eu errado? Não sei. Minha época já passou. Nosso passado
não interessa mais a eles.
Escrevo muitas histórias
escoteiras, e me permito a relembrar o passado. Dificilmente este modernismo participa
ou pede carona. Noto que quem me lê são chefes mais maduros principalmente os
mais antigos. Sei que muitos temas não interessam a eles. Acompanho a marcha
dos acontecimentos quando posso. Sei que meu escotismo de outrora não interessa
mais a eles. Dizem que as tradições são coisas do passado e devem ser enterradas
para uma nova vida moderna.
Se estão em reuniões de
sede, atividades aventureiras, acampando ou acantonado eles estão lá nas redes
sociais informando o que acontece. Lembro que quando passei para a tropa em uma
atividade de um domingo resolveu explorar sozinho o barulho de uma cascata.
Enquanto a patrulha cochilava lá fui eu. Perdi-me. Duas horas depois o Monitor
me encontrou. Nunca esqueci aquele dia. Hoje me dizem se eu tivesse um celular
ou um GPS não teria me perdido, mas não teria também uma história de aventuras
para contar.
Acredito que se hoje eu tivesse
forças eu não seria um bom Chefe. Na minha época pais processando grupos,
processando chefes por erros ou acidentes em atividades escoteiras querendo
enormes indenizações seria um absurdo. Hoje se vê dirigentes autoritários em
todas as camadas do escotismo. Alguns se acham donos e criam normas diferente
daquelas que conheci no passado. Falam em nova filosofia, nova pedagogia e definem
sem consulta o que os jovens devem fazer. Exigem do grupo e chefia o
cumprimento do dever que está escrito em seus domínios, Posturas que não
condizem com meu pensamento de garbo e boa ordem.
Muda-se com uma facilidade incrível. Usam um
palavreado que não condiz com minha formação familiar e Escoteira. Portanto se
algum dia antes de morrer inventarem uma fórmula deste sangue humano do conto
do Asimov, eu prefiro ficar como estou. Viver cem duzentos ou mais anos seria
de uma tristeza atroz. Acho que setenta oitenta e ou noventa anos já é demais.
Melhor morrer e renascer novamente dentro de uma época, onde me adaptarei mais
facilmente e que crescerei com ela sem ter as surpresas de uma mudança tão
radical como foi a minha.
Fui feliz como fui e
tenho certeza os jovens de hoje são felizes como são. Existe aí um choque de
gerações e para isto o melhor é os velhos se afastarem deixando-os agir como
acreditam. Dificilmente aceitarão divergências do que fazem e acreditam. A
juventude de hoje dizem é bem mais madura que a nossa. Ela sabe onde pisa e
aonde vai.
Mas será que eu
acredito nisto? Ainda sou a favor de umas palmadas para corrigir erros. Sei que
a violência gera a violência. Se as normas de condutas são válidas para o dia
de hoje precisaria ver o futuro para ver os resultados. Hoje acredito que as
normas de respeito e a educação ainda deviam ser normas de comportamento. Certo
ou errado fico deslocado no tempo quando um jovem ou uma jovem ao meu lado não
me olha, não me cumprimenta e fica de olhos firmes na sua parafernália eletrônica
que tem as mãos.
Portanto meus amigos, eu
nunca iria lutar para viver mais. Aqui não é mais o meu lugar. Hoje professores
têm que pisar em ovos para dar aulas, muitos pais perderam o controle sobre
seus filhos. As leis protetoras colaboram com menores que roubam matam.
Tubarões se encastelam no governo para encher os bolsos de dinheiro. Incrível,
enquanto eu não tenho um tostão eles passeiam de carro, aviões e outros com
milhares de reais, dólares ou euro nos bolsos e ou nas cuecas. E quando são
presos ficam alguns dias e saem sorrindo dizendo ser perseguição politica.
Melhor mesmo é ir para o outro lado da vida. Sei que aqui voltarei e quem sabe
já teremos um mundo em que irei me adaptar melhor. Portanto não me levem a mal,
que eu viva os anos que Deus me reservou e que eu possa morrer em paz!