quinta-feira, 18 de outubro de 2018

Crônicas de um Chefe Escoteiro. Eu gostaria de poder morrer em paz!



Crônicas de um Chefe Escoteiro.
Eu gostaria de poder morrer em paz!

Prefácio: - Palavras? Sim. De ar e perdidas no ar. Deixa que eu me perca entre palavras, deixa que eu seja o ar entre esses lábios, um sopro erramundo sem contornos, breve aroma que no ar se desvanece. Também a luz em si mesma se perde. (Octavio Paz).

                   Há muitos e muitos anos eu li um romance de ficção, cujo nome não me lembro e se não me engando foi escrito pelo escritor Isaac Asimov. Não vou contar a história, mas sim uma parte que me chamou atenção. No futuro os cientistas inventaram uma fórmula de sangue humano, que aplicada daria sobrevida por muitos anos aos habitantes do planeta. Em pouco tempo ninguém mais morria e os cemitérios foram abandonados e extintos. Se alguém resolvesse não mais fazer a transfusão quando morria era cremado.

                 Durante mais de quinhentos anos a terra praticamente ficou estável. Como já havia pessoas com trezentos quinhentos ou mais anos o interesse da perpetuação da espécie diminuiu e praticamente as crianças não existiam mais. A história comenta o novo estilo de vida, de homens e mulheres que a cada centena de anos se casavam novamente ou os que resolviam terminar suas vidas já velhos e poder morrer em paz.

                    Eu hoje estou entrando nos 78 anos. Não ambicionaria poder viver muito. O choque de gerações é enorme. Meu passado era de dizer sim senhor, beijar as mãos dos tios e avós e jogar bolinha de gude, soltar papagaios com o prazer de vê-lo voltar molhado do céu. Tive o orgulho de fazer um escotismo aventureiro e aprendi com meus amigos de patrulha e de tropa a fazer fazendo longe de adultos. Olho a juventude de hoje, tão diferente daquela do passado. Meninos e meninas com um celular na mão, que nem se dão conta que tem pessoas a sua volta. Os cumprimentos para eles não existem e suas vidas resumem a ficar blogados, ir a escola, ter em seu quarto a parafernália eletrônica e a noite correr para as baladas.

                    As roupas dos jovens de hoje são de marca. Quando sai um novo estilo de tênis, de camisetas sem contar o indefectível boné virado para trás eles vibram. Um Chefe outro dia me disse que bússola, ler mapas, percurso de gilwell ou mesmo sinais de fumaça ou de pista é passado. Para isto existe o GPS. Ele ria quando me disse que as barracas modernas se armam com um simples apertar de um botão. Disse também que seus jovens esperam o novo skate voador, pois assim não irão mais andar a pé.

                    Brincadeiras a parte é uma verdade que o mundo mudou. E como mudou. Eu costumo ficar deslocado. Hoje na minha caminhada em um centro esportivo próximo a minha casa, uma jovem no celular falava alto sem se preocupar com quem estava a sua volta. Brigava e discutia com seu namorado e ficou mais de uma hora com o mesmo assunto. Acredito que não me viu nem os demais que foram ali praticar exercícios. Meus netos quando me visitam ficam na sala ou na varanda horas e horas com seu celular. Em todos os lugares vemos todos eles com seus celulares. Quantas mudanças aconteceram. Eles estão certos e eu errado? Não sei. Minha época já passou. Nosso passado não interessa mais a eles.

                      Escrevo muitas histórias escoteiras, e me permito a relembrar o passado. Dificilmente este modernismo participa ou pede carona. Noto que quem me lê são chefes mais maduros principalmente os mais antigos. Sei que muitos temas não interessam a eles. Acompanho a marcha dos acontecimentos quando posso. Sei que meu escotismo de outrora não interessa mais a eles. Dizem que as tradições são coisas do passado e devem ser enterradas para uma nova vida moderna.

                    Se estão em reuniões de sede, atividades aventureiras, acampando ou acantonado eles estão lá nas redes sociais informando o que acontece. Lembro que quando passei para a tropa em uma atividade de um domingo resolveu explorar sozinho o barulho de uma cascata. Enquanto a patrulha cochilava lá fui eu. Perdi-me. Duas horas depois o Monitor me encontrou. Nunca esqueci aquele dia. Hoje me dizem se eu tivesse um celular ou um GPS não teria me perdido, mas não teria também uma história de aventuras para contar.

                      Acredito que se hoje eu tivesse forças eu não seria um bom Chefe. Na minha época pais processando grupos, processando chefes por erros ou acidentes em atividades escoteiras querendo enormes indenizações seria um absurdo. Hoje se vê dirigentes autoritários em todas as camadas do escotismo. Alguns se acham donos e criam normas diferente daquelas que conheci no passado. Falam em nova filosofia, nova pedagogia e definem sem consulta o que os jovens devem fazer. Exigem do grupo e chefia o cumprimento do dever que está escrito em seus domínios, Posturas que não condizem com meu pensamento de garbo e boa ordem.

                    Muda-se com uma facilidade incrível. Usam um palavreado que não condiz com minha formação familiar e Escoteira. Portanto se algum dia antes de morrer inventarem uma fórmula deste sangue humano do conto do Asimov, eu prefiro ficar como estou. Viver cem duzentos ou mais anos seria de uma tristeza atroz. Acho que setenta oitenta e ou noventa anos já é demais. Melhor morrer e renascer novamente dentro de uma época, onde me adaptarei mais facilmente e que crescerei com ela sem ter as surpresas de uma mudança tão radical como foi a minha.

                       Fui feliz como fui e tenho certeza os jovens de hoje são felizes como são. Existe aí um choque de gerações e para isto o melhor é os velhos se afastarem deixando-os agir como acreditam. Dificilmente aceitarão divergências do que fazem e acreditam. A juventude de hoje dizem é bem mais madura que a nossa. Ela sabe onde pisa e aonde vai.  

                        Mas será que eu acredito nisto? Ainda sou a favor de umas palmadas para corrigir erros. Sei que a violência gera a violência. Se as normas de condutas são válidas para o dia de hoje precisaria ver o futuro para ver os resultados. Hoje acredito que as normas de respeito e a educação ainda deviam ser normas de comportamento. Certo ou errado fico deslocado no tempo quando um jovem ou uma jovem ao meu lado não me olha, não me cumprimenta e fica de olhos firmes na sua parafernália eletrônica que tem as mãos.

                      Portanto meus amigos, eu nunca iria lutar para viver mais. Aqui não é mais o meu lugar. Hoje professores têm que pisar em ovos para dar aulas, muitos pais perderam o controle sobre seus filhos. As leis protetoras colaboram com menores que roubam matam. Tubarões se encastelam no governo para encher os bolsos de dinheiro. Incrível, enquanto eu não tenho um tostão eles passeiam de carro, aviões e outros com milhares de reais, dólares ou euro nos bolsos e ou nas cuecas. E quando são presos ficam alguns dias e saem sorrindo dizendo ser perseguição politica. Melhor mesmo é ir para o outro lado da vida. Sei que aqui voltarei e quem sabe já teremos um mundo em que irei me adaptar melhor. Portanto não me levem a mal, que eu viva os anos que Deus me reservou e que eu possa morrer em paz!