Crônicas de
um Velho Chefe Escoteiro.
Chico Cerca. Ele
era um analfabeto.
... - Não digo que
Chico Cerca deva ser um exemplo. Quem sabe de honradez, de coragem e de
fraternidade lhe dava o direito de ser o homem que sempre foi Ser letrado é uma
arte que todos devem aprender e aprimorar. No entanto desmerecer quem escreve
mal, quem não sabe nada das letras e garatuja pensando em acertar não me parece
ser uma forma de pessoas educadas. O contrário sim aplaudo aos que entendem
suas dificuldades que desconhecemos e por isto devemos relevar. A história de
Chico Cerca é um exemplo nato.
- Vez ou outra vejo comentários
jocosos sobre os erros de português de muitos que viajam nas páginas do
Facebook. Sei que as intenções são as melhores, pois temos realmente uma
população que deixa a desejar na sua escolaridade. (eu, por exemplo). Para a UNESCO, “uma pessoa funcionalmente analfabeta é
aquela que não pode participar de todas as atividades nas quais a alfabetização
é requerida para uma atuação eficaz em seu grupo e comunidade, e que lhe
permitem, também, continuar usando a leitura, a escrita e o cálculo a serviço
do seu próprio”. Perfeito. Data vênia eu me penitencio. Sempre soube que fui e
ainda sou um analfabeto, pois minha vivencia foi feita na escola da vida. Quando
iniciei minha saga de pseudo escritor, meus erros eram enormes (Ainda são). Vocês
nem imaginam quantos educadamente ou maquiavelmente me escreviam alguns
condenando e outro querendo me ensinar. Um deles foi enfático em dizer que
deveria voltar à escola mesmo com minha idade se queria ser um escritor. Eram
muitos que educadamente se ofereceram para revisar meus artigos e contos.
Desistiram logo quando viram a quantidade. Risos.
Se não
fosse o Word eu estaria perdido na Selva de Mowgly. Nele eu me arranchei nas
margens do Rio Waingunga e lá assentei praça de pseudo escritor escoteiro até
hoje. Ele me ajuda “pacas”. Continua ainda os erros de concordância, pontuação
e demais amarras da língua portuguesa. Não me considero um exemplo. Afinal cada
um sabe onde amarrar seu cadarço para não se esborrachar no chão. Recebo
dezenas de e-mails, contatos no Facebook e até cartas (usam ainda os Correios
do Brasil). Entendo tudo que escrevem. Fico feliz pelo esforço e sempre
respondo. Nunca critiquei ou deixei de responder. Nunca corrigi os erros de ninguém,
e se eles o cometeram foi porque não tiveram a oportunidade de estudar como
muitos outros. Quando fui Formador nunca me preocupei com alunos que se
esforçavam para fazerem anotações em seus cadernos (era uma praxe de Gilwell).
Quando assumi a liderança escoteira em Minas Gerais, um Chefe que sempre
admirei me disse: - Vado Escoteiro tome cuidado com os analfabetos, os
desdentados os mal vestidos, eles podem dar uma falsa impressão do que podemos
realizar na formação da juventude. Quer saber? Não gostei. Achei isto pedante e
para mim não era importante.
Não
desmereço uma boa formação intelectual. Ela faz parte do crescimento interior e
espiritual. A cada nova vida vamos aprendendo na escola dos homens e na escola
da vida. Outro dia vi alguém corrigindo um ser vivente que rabiscava suas
poucas letras querendo participar mais de suas lembranças, passagens, e porque
não contar que também é um ser humano. Isto me fez voltar no tempo e lembrei-me
do Chico Cerca. O conheci em um curso e apesar de não sermos da mesma patrulha
ficamos amigos e somos até hoje apesar dele morar no céu. Era analfabeto de pai
e mãe como dizem por aí. Um dos diretores viu logo o simplório, pois ele não
escrevia nada no seu caderno. Chamou-o em particular e disse que só daria a ele
o certificado de aprovação quando aprendesse a ler e escrever. Não fui a favor.
Quando fui indicado para Comissário Regional enviei pelo correio seu
certificado. Não sei se hoje os “chefões” dariam a ele esta oportunidade.
Muitos
anos passados e um belo dia fui fazer uma visita a sua Tropa em uma cidade
próxima a minha. Fui de bicicleta com mais três chefes amigos. Fomos recebidos
como reis. Insistiram que fossemos hospedar em suas casas, mas levamos barracas
e dormimos nela. Fiquei mais amigo dele que nunca. Chico Cerca era um apelido.
Ele era um construtor e consertador de cercas das fazendas da região. Por isto
o apelido. Seu nome era Francisco de Arimatéia. Olhe meus amigos nunca vi tanta
gente o abraçando, e falando tão bem dele que fiquei surpreso. Eram tantos pais
que foram escoteiros dele, falando maravilhas de sua chefia que pensei que o
saber não era tanto para ser um bom Chefe Escoteiro. O próprio prefeito veio
até a mim para dizer que homens como Chico Cerca são poucos. Ficamos lá dois
dias e me encantei com a cidade e seus habitantes. Uma fraternidade que dava
lições enormes as outras tantas espalhadas pelo Brasil.
No dia
da partida perguntei: - Chico conseguiu receber seu certificado? Ele riu. Um
sorriso gostoso, amigo sincero cheio de amor para dar. – Vado, nunca me
enviaram até o dia que você assumiu a Região de Minas Gerais. Um dia sonhei em
ter pelo menos o anel de Gilwell, mas este sei que é impossível. Estou tentando
aprender, entrei em uma escola noturna. Aprendi a ler e escrever com
dificuldade. Foi bom, pois agora consigo ler mesmo devagar os livros que
comprei de Baden-Powell. O Doutor Morgado, Juiz de Direito da cidade chegou
abraçando Chico. Olhou-me e disse: - Fui seu Escoteiro, devo o que sou a ele. Chico
escreveu para mim seu endereço da sua nova casa. Trabalhou muito para comprar.
Vi que ainda eram garranchos cheios de erros de português. Eu sempre soube que
Chico nunca iria ter uma medalha, um agradecimento dos Lords Escoteiros. E daí?
Eu na minha simplória memória escoteira o guardei para sempre no meu coração. Sou
um incentivador dos estudos por parte dos jovens e adultos, isto é importante
para o seu sucesso e seu futuro. Mas me desculpem. Nunca vou condenar alguém que
na sua simplicidade tem erros homéricos de português! Afinal, ele é um ser
humano que merece nosso amor e consideração.