Crônicas de um Velho Chefe Escoteiro.
“Caio Vianna Martins”
Uma história de heróis para ser
lembrada por todo o sempre!
Nada
poderia impedir o desastre. Nada. A velocidade do cargueiro era grande e ambos
os maquinistas sabiam o que ia acontecer. Os freios rangeram, os apitos soaram
e a batida veio forte. Estrondos se fizeram ouvir. Vagões foram expulsos da
linha, jogados em uma ribanceira. Eram duas horas e cinco minutos da madrugada.
Uma madrugada que entrou para a história. Um engavetamento monstro se formou.
Alguns vagões ficaram irreconhecíveis. 19 de dezembro. A cinco dias do natal.
Ano de 1938.
O carro
dos escoteiros saltou dos trilhos e atravessou para a direita. Outro carro
colidiu com ele engavetando e o partindo ao meio. O vagão prensado deitou-se em
um barranco sendo comprimido por muitos outros. Gritos. Pedidos de socorro,
tudo escuro, não se via nada. Noite sem lua. O chefe Clairmont e o chefe Rubens
acordaram e sentiram tudo. Estavam apenas com alguns arranhões. Atônitos viram
o desespero dos passageiros.
Gritos de
socorro, gemidos, o barulho da colisão agora se fazia em menor escala.
Clairmont e Rubens se puseram na ativa. Ali começou seu trabalho de escotistas
na hora do perigo. Os chefes Escoteiros sabem que um dia terão de agir e esta
hora chegou para Clairmont e Rubens. A seu modo eles também foram heróis.
Poucos se lembram deles. Seus nomes foram esquecidos. Reuniram todos os jovens
em um ponto da estrada. Deram falta do Escoteiro Hélio Marcos e do Lobinho Gérson
Issa Satuf. Procuraram e os encontraram mortos embaixo de escombros.
Impossível descrever tudo nos seus
detalhes mais íntimos. Era uma carnificina. Feridos gritavam e a escuridão não
ajudava na localização. As duas patrulhas e os pioneiros fizeram uma grande
fogueira. Usaram madeiras destroçadas dos vagões. A única luz que ali poderia
ajudar naquela hora fatídica. O pânico reinava.
Clairmont e Rubens batalhavam. Com os pioneiros e escoteiros que nada
sofreram socorriam os feridos, fizeram macas para os casos mais graves e o resgate
prosseguia, mas agora mais devagar.
Caio
cambaleante ajudava como podia fazendo tipoias, estancando sangue de feridos, e
até ajudou na remoção de alguns feridos até o um vagão dormitório que
permaneceu intacto e serviu de pronto socorro. Caio havia recebido uma forte
pancada na região lombar. Quase não comentava a dor intensa que sentia. Só às
sete da manhã chegou o socorro com médicos e enfermeiros da cidade de
Barbacena.
Fora uma
madrugada terrível. Os passageiros que nada sofreram trabalharam
incansavelmente. Clairmont e Rubens estavam esgotados. Não pararam um só
instante. Dois heróis. Dois homens que tinham a carisma dos grandes heróis
anônimos que surgem e nunca são lembrados. Quando a maioria dos feridos tinha
sido removida, viram Caio claudicando, sentindo dores terríveis. Tentaram levá-lo.
Ele não aceitou. Disse e apontava para as vitimas que pareciam em estado mais
grave e dizia, há muitos feridos. Eu não estou tão ferido como eles. Recusou a
maca.
A história
como disse é cheia de fatos heroicos. Eles surgem assim do nada. Caio Vianna
Martins é um deles. Nunca pensou que ficaria como o grande herói do escotismo
nacional. Não disse suas belas palavras por dizer. Saiu naturalmente. Viram que
ele estava cambaleante, e seus olhos piscavam. Seus lábios tremiam uma golfada
de sangue saiu de sua boca e mesmo assim não deixou em tempo algum que o
carregassem. Disse para todos o que ficaria como a mais bela frase já dita por
uma legião de heróis – “Há muitos feridos aí. Deixe-me que irei só. Ajudem os
outros, eu sou um Escoteiro e o Escoteiro caminha com suas próprias pernas”!
Saiu
caminhando e desfaleceu sendo levado à cidade de Barbacena. Morreu horas mais
tarde em consequência dos rompimentos das vísceras e de uma intensa hemorragia
interna. Poucos o ouviram pronunciar essas palavras. Alguns escoteiros e alguns
enfermeiros. Elas foram comunicadas a nação e ao mundo graças a dois homens
públicos que lá estavam na hora. Eles foram testemunhas da história. Alcides
Lins e Otacílio Negrão de Lima. Este último ficou conhecido como um grande
político mineiro. Eles ficaram impressionados com o que viram. Não só pelas
palavras de Caio como a ação dos escoteiros na ajuda aos feridos.
Levaram
aos jornais o que tinham assistido. O mundo inteiro ficou sabendo que o Brasil
também forja homens e jovens com a desenvoltura de Caio Vianna Martins e seus
amigos escoteiros. As manchetes dos jornais e rádios correram por toda a parte.
Reconheciam no gesto de Caio Martins um fato marcante na mente dos jovens que
fazem parte desta nossa bela fraternidade. Caio foi escolhido e eleito como o
símbolo Escoteiro no Brasil.
Seu nome
ficou gravado na história. Praças, monumentos, e até um estádio de futebol tem
seu nome. Estádio Caio Martins. Sua fama faz parte do nosso orgulho Escoteiro. Caio
Vianna Martins, Gerson Issa Satuf e Hélio Marcos de Oliveira Santos, foram
sepultados em uma tarde de dezembro, véspera de natal, no cemitério Bom Fim, na
zona norte de Belo Horizonte.
Hoje seu
Grupo no Colégio Afonso Arinos não existe mais. Mas uma placa de bronze é vista
por todos do herói e seus amigos Escoteiros pelos alunos que por anos e anos
cursaram suas salas. Esta é uma historia contada aqui e ali em pedaços
imaginários e reais. Caio e seu gesto foram uma realidade. Ninguém pode
duvidar.
Em memória a Caio Vianna Martins, Gerson Issa Satuf e Hélio
Marcos de Oliveira Santos, saudemos no panteão da glória e dos heróis nacionais
com o nosso:
SEMPRE ALERTA! E tiramos o chapéu com o Grito de guerra da
União dos escoteiros do Brasil – Anrê – Anrê – Anrê! – Pró Brasil?
Maracatu!
“Há muitos
feridos aí. Deixe-me que irei só. Ajudem os outros, Eu sou um Escoteiro e o
Escoteiro caminha com suas próprias pernas”!
Estoicismo
(Noticia
publicada em jornais em todo Brasil) – dezembro 1938.
Passou
provavelmente despercebida, nas notícias pormenorizadas sobre a última
catástrofe da Central, a serena coragem daquele pequeno Escoteiro, uma criança
de quinze anos, que estando gravemente ferida, os que o queriam levar em maca
para o hospital, dizendo com um sorriso de homem forte: "Um Escoteiro
caminha com suas próprias pernas". E caminhou. E foi, mas foi para morrer,
poucas horas depois, no leito em que o colocaram para uma tentativa de
salvação. Este menino de quinze anos honrou o nome e deu um exemplo a todos os
Escoteiros do País. E mostrou a muita gente grande que um Escoteiro sabe sorrir
para morte que o acompanha de perto.
Se um dia
for erguido qualquer monumento ao "Escoteiro Desconhecido", a
lembrança do estoicismo desta criança resumirá a bravura de uma geração de
Escoteiros do Brasil.
Nota do autor
Em julho de 1973, na cidade de
Matozinhos, comemorando o cinquentenário de nascimento de Caio Vianna Martins,
fizemos a entrega da medalha de Valor ouro, post-mortem a Caio Viana Martins
através de seu irmão ali presente. Foi uma cerimônia simples, com altas autoridades
executivas, educacionais e políticas. Presentes mais de 600 escoteiros mineiros
e uns poucos convidados de outros estados que ali fizeram o primeiro
acampamento da fraternidade.
Chefe Osvaldo Ferraz.