As deliciosas estripulias escoteiras do Capitão Ventania
Foi
minha esposa que me lembrou do aniversário de um Chefe de um grupo amigo. Ele
tinha nos convidado. Fora pessoalmente em minha casa. Ainda bem que ela
lembrou. Domingo sempre fico com o "Velho" Escoteiro e quando lá
estou eu me esqueço de tudo. Liguei para a casa do "Velho" Escoteiro
para dizer aonde ia e ninguém atendeu. Deduzi que devia ter saído. Ligaria mais
tarde. Finalmente coloquei minha calça de tergal cinza chumbo, minha camisa
azul mescla, meu lenço e claro sapatos pretos. Achei que estava vestindo o
social. Ele em seu convite marcou as 16 hs do domingo, e lá fomos eu e minha
esposa. Como era bem perto resolvemos ir a pé. Sinto-me bem em um uniforme
Escoteiro. Gosto de cumprimentar vizinhos e amigos e que eles vejam minha
alegria e meu orgulho em ser um Escoteiro. Chegamos as dezesseis em ponto. Nem
um minuto mais nem um minuto menos. Risos. A casa estava cheia, dezenas de
escotistas, mas os uniformes? Sem comentários. Cumprimentei ao aniversariante e
claro, dei de presente uma pequena flor de lis de lapela foleada a ouro. Ele se
mostrava ser um Escotista alegre e bem disposto.
Conhecia
muitos dos presentes e deixei minha esposa com a anfitriã e lá fui eu cumprir
minha missão de cavalheiro educado e bom Escoteiro, cumprimentar a todos.
Muitas rodinhas, muitos conversando aqui e ali e foi então que ouvi risadas e
palmas. De onde? Dirigi-me onde supunha ser. Era no quintal da casa, uma turma
enorme com cadeiras em circulo se divertindo. E nada mais nada menos que o
"Velho" Escoteiro liderando a todos em jogos, pois não importa a
idade, nós chefes nos deliciamos com os jogos que participamos. Quando me viu
gritou – Moleza! Pegue uma cadeira e entre na turma! Ri alto. O
"Velho" sempre o "Velho".
Estavam
fazendo o jogo da rosa. Senhor e senhora. Já conhecia e me enrolava sempre
quando fazia. Depois do jogo uma rodada de cerveja (ainda bem, festa sem
cerveja para mim não dá) e muito salgadinho. O "Velho" se divertia.
Parecia nos seus velhos tempos. Foi quando um Chefe novato resolveu
interpelá-lo – Chefe! O que acha das mudanças que estão acontecendo no
escotismo? – O "Velho" riu de leve. Todos olhando para ele. – Vou
contar a vocês uma história. De um amigo que conheci no passado. Sumiu. Não sei
onde anda. Não sei se ouviram falar no Capitão Ventania. Um apelido que deram a
ele e que o divertia muito.
Todos se
calaram. Muitos que estavam na sala quando souberam que o "Velho"
estava contando uma história, correram para o pátio. O "Velho" era
assim. Afinal estava em seu distrito e uma grande amizade havia conquistado com
todos. Capitão Ventania pensei. Nunca ouvi falar. O "Velho" nunca
comentou comigo. Mas como ele tinha uma vivencia tão grande no movimento
Escoteiro, achei melhor ouvir e conhecer mais uma de suas historias.
- O
Capitão Ventania era o Diretor Técnico do 556º Grupo Escoteiro General Santo
Ângelo. Um bom Chefe. Entrou como sênior e depois foi Chefe de tropa e Sênior. Ficou
fora alguns anos e retornou. Com o falecimento do Chefe Ludolfo, o ex Chefe do
grupo, ele assumiu por escolha dos demais chefes do grupo. Não sei por que o
escolheram. Gostava dele é claro, mas não sentia pulso na sua liderança em um
grupo como aquele. Sempre quis saber o porquê de seu apelido. Ele ria. Um dia
me contou. Estavam acampados há cinco dias na Ilha das Cobras litoral de São
Paulo. Ele ouviu no radio que um pequeno ciclone estava em formação e como eram
onze seniores ele ficou de olho no mar esperando a primeira leva do vento. Viu
que não seria fácil. Pegou uma corda e amarrou todos em uma arvore inclusive
ele. Instruiu para ficarem de olhos fechados evitando farpas e areia durante o
tempo que durante a ventania. Deu certo. Nada aconteceu a eles e até o material
que amarraram em um tronco saiu incólume.
- Os
seniores quando retornaram disseram que se não fosse o Capitão dos Ventos
poderia ser pior do que fora. Conversa daqui e dali e eis que surgiu o Capitão
Ventania. Ele gostava e ria quando o chamavam assim. Mas para dizer a verdade
nunca soube o nome dele. Acho que era Juvenal, mas não tenho certeza. Bem vamos
aos entretantos. Ventania para mim foi o único que se revoltou com tantas
modificações. Via com tristeza muitos jovens saindo do escotismo. Perguntava o
porquê, ia a casa deles, pesquisava e sempre coçavam cabeça e diziam: - Nada
Chefe, é que meu tempo está curto tenho que estudar mais ou então diziam –
Chefe vou ser franco, o programa não está bom, não é chamativo e outro disse –
Chefe, sempre me disseram que ser Escoteiro está na alma, no coração, mas não
sinto mais o que sentia pelo escotismo como antes. Acho que meu coração e minha
alma morreram para o escotismo.
- E
agora? Pensou Ventania. Ele se lembrava do passado, quando o menino ralava para
conseguir a Segunda Classe. Pelo menos um ano sonhando. Alguns até conseguiam
com oito meses. E a Primeira Classe? Dois anos. Era um orgulho andar com ele
costurado na manga da camisa. Era fácil identificar um jovem que estava há
tempos no movimento. Um orgulho ver em uma Patrulha vários segundas e primeiras
classes. Agora não. Só via muitas especialidades e nada que pudesse dizer o que
ele era. Claro as estrelas de atividade ainda existiam. De pano, sem brilho com
as de metal. As provas? Mudaram tudo. Claro, havia ainda um resquício de
técnicas mateiras. Mas colocadas de maneira tal que muitos não se interessavam.
Ele achava que deviam ter mantido a segunda e primeira classe. Poderiam até ter
alterado as exigências para consegui-las, mas não o fizeram.
-
Durante dois anos Ventania notava que o grupo não crescia. – Olhem dizia o
"Velho", Ventania me surpreendeu. Um dia me procurou – Chefe não dá
mais. Entra dois sai um entra um sai dois. Disse para ele – Ventania pode ser
que tenha outros motivos. Ele me dizia – Pode até ter, eu mesmo já não me
surpreendo com nada. Mudaram tantas coisas, nos lobinhos não se vê mais a
primeira e segunda estrela, uniformes então. Chefe não posso concordar com
isto. Veja o senhor, vamos juntos dar uma volta. O senhor de Caqui, chapelão,
bem uniformizado e eu de camiseta, lenço amarrado na ponta um short qualquer. O
que vai dizer o público? Olhe Ventania, eles acham que assim é mais atual
afinal eles dizem que precisamos mudar. Novos tempos. Não é não Chefe,
respondeu. No grupo infelizmente o jovem é bombardeado com todas estas
modificações e ele compra. Quem não compraria? E depois se mandam.
-
Chefe, tem dois anos que permanecemos com três patrulhas e olhe patrulhas
mistas, sempre com quatro ou cinco jovens em cada uma. Dificilmente conseguimos
sete ou oito. Na Alcateia a mesma coisa. Tem quatro anos desde que as
modificações fizeram efeito que ela nunca teve mais de treze a quinze lobos. E
os meninos saem mais que as meninas. Muitos reclamam comigo que a menina quer
mandar muito e as meninas reclamam que os escoteiros são indisciplinados. Que
coisa Chefe. Nunca vi nada igual. Estive pensando e vou fazer uma experiência
de um ano. Um ano somente. Sem falar nada com o distrito e a região. Se eles
souberem que se dane. O que vou fazer é o que eles deveriam ter feito antes.
Pegar duas ou três tropa de estados brasileiros, com suas características seus
estilos e colocarem em prática este novo programa e o anterior durante dois
anos ou mais. Ver o resultado. Dar tudo para que os chefes possam aprender e
ensinar. Então depois de passado o tempo programado, com um executivo
profissional pago para isto, ver e verificar as falhas ver se deu certo. Deu?
Então mãos a obra. Um marketing perfeito e todos os grupos escoteiros
brasileiros iriam aceitar sem reclamações.
-
Pensava comigo que o Ventania me surpreendia. Ele era perfeito em suas
exposições. A turma dos catorze do forte (brincando somente, catorze é quantos
participam do CAN que decide os destinos do escotismo no Brasil.) nunca fez
isto. Sempre impôs suas surpreendentes modificações, a base da surpresa e como
se fosse um presente de Papai Noel. Porque não? Alterações e modificações que
vão interferir na vida de milhares de jovens não podia ser assim. Muitas vezes
vi que a condução de fóruns, congressos e mutirões onde participavam jovens era
fácil modificar. A maioria aprovava sem pestanejar. Deixei que Ventania
continuasse seu raciocínio. – Pretendo Chefe voltar às origens. Vou pagar do
meu bolso a confecção dos distintivos. Vou conseguir as estrelas de prata. E
sem maiores comentários vou criar uma nova tropa começando do nada. Oito
jovens. Meus futuros monitores. Quatro meses preparando. Depois a promessa
deles. Aumentar as patrulhas à medida que for aparecendo interessados, assim
vou ver se em um ano tenho quatro.
- Mas
Ventania eu disse, fará isto no seu grupo? Sim Chefe. Deixarei que os demais
continuem como estão sem interferir. - E acha que vai dar certo? – Não sei. Vou
tentar. Vou voltar ao velho Sistema de Patrulhas. Vou trabalhar com monitores.
Dar a eles liberdade. Sem essa de novos tempos, criminalidade e etc. Farei tudo
com a máxima segurança. Em seis meses já vão acampar sozinhos. Estarei na
redondeza em alguns horários. O forte será atividades ao ar livre. Deixar que
eles façam. Aprendam a fazer fazendo. Cada um com sua ficha 120. Vendo como
estão e como poderão atingir a segunda e primeira classe. Em um ano e meio
começarei a fazer as jornadas. Isto mesmo. Nos moldes de antes. Aventureira.
Claro já disse o local bem escolhido, nada fora do combinado, previamente
discutido e escolhido o pernoite. – Danado o Ventania. Estava fazendo o que eu
sempre desejei.
- A esposa
do aniversariante chamou a todos para cantar os parabéns. Ninguém queria ir.
"Velho"! E então? O que aconteceu queriam todos saber. – O
"Velho" naquele seu jeitão teatral levantou, enfiou a mão do bolso da
camisa e lembrou que não mais cachimbava e disse – Na volta. Vamos cumprir
nossa obrigação com nosso amigo. Aquela algazarra já conhecida do parabéns a
você. Comer bolo, outra cerveja e conversando com o aniversariante vi que todos
carregavam o "Velho" para o quintal. Pedi desculpa e fui correndo
também. Ainda bem que o "Velho" não tinha começado. Estava fazendo um
jogo. Danado de "Velho". Nada como um bom jogo para animar. Achar a
pista no Kim do Luar não é fácil. Já conhecia. Mas adorava o jogo.
- Terminado
alguém disse – E aí "Velho"? E o Capitão Ventania conseguiu o que
queria? Bem, alguém o “dedurou” no Distrito. Mandou-os irem passear. A região
interferiu. Entrei na parada. Deixem que ele faça a experiência. É uma tropa
somente. Vocês tem medo de que? – Eu não era bem quisto por eles, mas tinham
certo respeito. Não disseram nada. Sou que eu e o Ventania fomos parar em uma
Comissão de Ética na direção nacional e na Região. Não deu nada, mas podia dar.
Durante um ano visitei as reuniões do Capitão Ventania. Dava gosto de ver os
meninos uniformizados de caqui e chapelão. Sim todos tinham. Como conseguiram?
Ventania dizia que nada é impossível para quem sonha e faz o sonho se realizar.
Ele modificou alguma coisa nas provas. Aprovou parte do novo programa, mas sem
deixar a segunda e primeira classe. Quando os primeiros escoteiros fizeram um
ano, receberam suas estrelas de metal. A primeira tropa que ainda estava com o
programa antigo começou a reclamar.
- Um dia
pediram para fazer uma Corte de Honra com as duas tropas. Viram que a nova estava
com vinte e seis escoteiros e eles com dezoito. Por quê? Porque não saiam
ninguém e a deles sempre novatos? A experiência do Ventania estava chegando ao
fim. O que ele queria provar a si próprio aconteceu. A maioria dos jovens
participantes adorava o sistema, a maneira de condução e quando cinco receberam
a primeira classe foi uma festa. As jornadas que fizeram ficou para a história.
Ventania dois anos depois teve um câncer de próstata. Não dava mais para
continuar. Mesmo tratando ele viveu mais três anos. Neste período o novo Chefe
que assumiu instruído por um novo assessor pessoal formado nos moldes atuais,
voltou às origens de hoje. Nos cursos de formação mostravam para ele que o
escotismo não era o que o Ventania fazia. Aí meus amigos, a tropa começou a
definhar. Era muito um grupo ter duas tropas. Em um ano a tropa do Ventania
acabou. Alguns dos membros foram incorporados à outra tropa. O uniforme agora
era novo. As provas de classe e as estrelas de atividade eram de pano. E de
pano eles acharam que era o novo escotismo que não estavam mais gostando. Os
jovens do Ventania se debandaram.
- Eu mesmo
cutuquei o distrito e a região se por acaso tentaram ver as vantagens do que
Ventania fez. Não deram bola. Insisti – Mas nem mesmo sua experiência viram se
foi válida ou não? Afinal ele mostrou que o caminho para o sucesso é provar que
vale a pena mudar dentro de bases reais. E vocês nunca fizeram isto. Vão
mudando ao sabor do vento e da tempestade. Muitas vezes copiando o que se faz
no exterior e esquecendo que parte do passado tem sua validade. Nem me deram
bola. Não gostavam de discutir, pois se achavam acima de tudo. Uma das novas
dirigentes, uma Escotista então se vangloriava das mudanças. Usava um
palavreado difícil aos meus ouvidos. Gosto mais da prática. Do real. De tocar e
sentir. De ver dar certo.
- E o
Ventania perguntaram? Morreu três anos depois. Morreu feliz. Disse que tinha
vencido. Sabia que sua experiência só valeu para os meninos que participaram. E
ele se sentia vitorioso. Não importava se aqueles que mudaram tudo não deram
valor. – Ventania. Capitão Ventania, quem diria. Para mim um alegre Chefe e
suas estripulias mirabolantes. – Fiquei olhando o "Velho" Escoteiro.
Quase oito anos de convivência. Cada dia mais e mais aprendia. Quando achava
que sabia tudo lá vinha ele contando novidades me mostrando um caminho novo
para achar a trilha do sucesso. Uma hora da manhã. Minha esposa veio me chamar.
Amanhã é segunda, dia de palavrão ela sempre dissera isto. Eu gostava da segunda
feira. Gostava do meu trabalho. Os amigos e companheiros que lá estavam eram
para mim como irmãos. Anos e anos de convivência. Não seria bom que no
escotismo fosse assim também?
Vão para o diabo sem mim
Ou deixem-me ir sozinho para o diabo
Porque havemos de ir juntos?
Ou deixem-me ir sozinho para o diabo
Porque havemos de ir juntos?
Álvaro de
Campos