segunda-feira, 30 de junho de 2014

As deliciosas estripulias escoteiras do Capitão Ventania


As deliciosas estripulias escoteiras do Capitão Ventania

               Foi minha esposa que me lembrou do aniversário de um Chefe de um grupo amigo. Ele tinha nos convidado. Fora pessoalmente em minha casa. Ainda bem que ela lembrou. Domingo sempre fico com o "Velho" Escoteiro e quando lá estou eu me esqueço de tudo. Liguei para a casa do "Velho" Escoteiro para dizer aonde ia e ninguém atendeu. Deduzi que devia ter saído. Ligaria mais tarde. Finalmente coloquei minha calça de tergal cinza chumbo, minha camisa azul mescla, meu lenço e claro sapatos pretos. Achei que estava vestindo o social. Ele em seu convite marcou as 16 hs do domingo, e lá fomos eu e minha esposa. Como era bem perto resolvemos ir a pé. Sinto-me bem em um uniforme Escoteiro. Gosto de cumprimentar vizinhos e amigos e que eles vejam minha alegria e meu orgulho em ser um Escoteiro. Chegamos as dezesseis em ponto. Nem um minuto mais nem um minuto menos. Risos. A casa estava cheia, dezenas de escotistas, mas os uniformes? Sem comentários. Cumprimentei ao aniversariante e claro, dei de presente uma pequena flor de lis de lapela foleada a ouro. Ele se mostrava ser um Escotista alegre e bem disposto.

             Conhecia muitos dos presentes e deixei minha esposa com a anfitriã e lá fui eu cumprir minha missão de cavalheiro educado e bom Escoteiro, cumprimentar a todos. Muitas rodinhas, muitos conversando aqui e ali e foi então que ouvi risadas e palmas. De onde? Dirigi-me onde supunha ser. Era no quintal da casa, uma turma enorme com cadeiras em circulo se divertindo. E nada mais nada menos que o "Velho" Escoteiro liderando a todos em jogos, pois não importa a idade, nós chefes nos deliciamos com os jogos que participamos. Quando me viu gritou – Moleza! Pegue uma cadeira e entre na turma! Ri alto. O "Velho" sempre o "Velho".

           Estavam fazendo o jogo da rosa. Senhor e senhora. Já conhecia e me enrolava sempre quando fazia. Depois do jogo uma rodada de cerveja (ainda bem, festa sem cerveja para mim não dá) e muito salgadinho. O "Velho" se divertia. Parecia nos seus velhos tempos. Foi quando um Chefe novato resolveu interpelá-lo – Chefe! O que acha das mudanças que estão acontecendo no escotismo? – O "Velho" riu de leve. Todos olhando para ele. – Vou contar a vocês uma história. De um amigo que conheci no passado. Sumiu. Não sei onde anda. Não sei se ouviram falar no Capitão Ventania. Um apelido que deram a ele e que o divertia muito.

           Todos se calaram. Muitos que estavam na sala quando souberam que o "Velho" estava contando uma história, correram para o pátio. O "Velho" era assim. Afinal estava em seu distrito e uma grande amizade havia conquistado com todos. Capitão Ventania pensei. Nunca ouvi falar. O "Velho" nunca comentou comigo. Mas como ele tinha uma vivencia tão grande no movimento Escoteiro, achei melhor ouvir e conhecer mais uma de suas historias.

            - O Capitão Ventania era o Diretor Técnico do 556º Grupo Escoteiro General Santo Ângelo. Um bom Chefe. Entrou como sênior e depois foi Chefe de tropa e Sênior. Ficou fora alguns anos e retornou. Com o falecimento do Chefe Ludolfo, o ex Chefe do grupo, ele assumiu por escolha dos demais chefes do grupo. Não sei por que o escolheram. Gostava dele é claro, mas não sentia pulso na sua liderança em um grupo como aquele. Sempre quis saber o porquê de seu apelido. Ele ria. Um dia me contou. Estavam acampados há cinco dias na Ilha das Cobras litoral de São Paulo. Ele ouviu no radio que um pequeno ciclone estava em formação e como eram onze seniores ele ficou de olho no mar esperando a primeira leva do vento. Viu que não seria fácil. Pegou uma corda e amarrou todos em uma arvore inclusive ele. Instruiu para ficarem de olhos fechados evitando farpas e areia durante o tempo que durante a ventania. Deu certo. Nada aconteceu a eles e até o material que amarraram em um tronco saiu incólume.

          - Os seniores quando retornaram disseram que se não fosse o Capitão dos Ventos poderia ser pior do que fora. Conversa daqui e dali e eis que surgiu o Capitão Ventania. Ele gostava e ria quando o chamavam assim. Mas para dizer a verdade nunca soube o nome dele. Acho que era Juvenal, mas não tenho certeza. Bem vamos aos entretantos. Ventania para mim foi o único que se revoltou com tantas modificações. Via com tristeza muitos jovens saindo do escotismo. Perguntava o porquê, ia a casa deles, pesquisava e sempre coçavam cabeça e diziam: - Nada Chefe, é que meu tempo está curto tenho que estudar mais ou então diziam – Chefe vou ser franco, o programa não está bom, não é chamativo e outro disse – Chefe, sempre me disseram que ser Escoteiro está na alma, no coração, mas não sinto mais o que sentia pelo escotismo como antes. Acho que meu coração e minha alma morreram para o escotismo.

              - E agora? Pensou Ventania. Ele se lembrava do passado, quando o menino ralava para conseguir a Segunda Classe. Pelo menos um ano sonhando. Alguns até conseguiam com oito meses. E a Primeira Classe? Dois anos. Era um orgulho andar com ele costurado na manga da camisa. Era fácil identificar um jovem que estava há tempos no movimento. Um orgulho ver em uma Patrulha vários segundas e primeiras classes. Agora não. Só via muitas especialidades e nada que pudesse dizer o que ele era. Claro as estrelas de atividade ainda existiam. De pano, sem brilho com as de metal. As provas? Mudaram tudo. Claro, havia ainda um resquício de técnicas mateiras. Mas colocadas de maneira tal que muitos não se interessavam. Ele achava que deviam ter mantido a segunda e primeira classe. Poderiam até ter alterado as exigências para consegui-las, mas não o fizeram.

                - Durante dois anos Ventania notava que o grupo não crescia. – Olhem dizia o "Velho", Ventania me surpreendeu. Um dia me procurou – Chefe não dá mais. Entra dois sai um entra um sai dois. Disse para ele – Ventania pode ser que tenha outros motivos. Ele me dizia – Pode até ter, eu mesmo já não me surpreendo com nada. Mudaram tantas coisas, nos lobinhos não se vê mais a primeira e segunda estrela, uniformes então. Chefe não posso concordar com isto. Veja o senhor, vamos juntos dar uma volta. O senhor de Caqui, chapelão, bem uniformizado e eu de camiseta, lenço amarrado na ponta um short qualquer. O que vai dizer o público? Olhe Ventania, eles acham que assim é mais atual afinal eles dizem que precisamos mudar. Novos tempos. Não é não Chefe, respondeu. No grupo infelizmente o jovem é bombardeado com todas estas modificações e ele compra. Quem não compraria? E depois se mandam.

              - Chefe, tem dois anos que permanecemos com três patrulhas e olhe patrulhas mistas, sempre com quatro ou cinco jovens em cada uma. Dificilmente conseguimos sete ou oito. Na Alcateia a mesma coisa. Tem quatro anos desde que as modificações fizeram efeito que ela nunca teve mais de treze a quinze lobos. E os meninos saem mais que as meninas. Muitos reclamam comigo que a menina quer mandar muito e as meninas reclamam que os escoteiros são indisciplinados. Que coisa Chefe. Nunca vi nada igual. Estive pensando e vou fazer uma experiência de um ano. Um ano somente. Sem falar nada com o distrito e a região. Se eles souberem que se dane. O que vou fazer é o que eles deveriam ter feito antes. Pegar duas ou três tropa de estados brasileiros, com suas características seus estilos e colocarem em prática este novo programa e o anterior durante dois anos ou mais. Ver o resultado. Dar tudo para que os chefes possam aprender e ensinar. Então depois de passado o tempo programado, com um executivo profissional pago para isto, ver e verificar as falhas ver se deu certo. Deu? Então mãos a obra. Um marketing perfeito e todos os grupos escoteiros brasileiros iriam aceitar sem reclamações.

              - Pensava comigo que o Ventania me surpreendia. Ele era perfeito em suas exposições. A turma dos catorze do forte (brincando somente, catorze é quantos participam do CAN que decide os destinos do escotismo no Brasil.) nunca fez isto. Sempre impôs suas surpreendentes modificações, a base da surpresa e como se fosse um presente de Papai Noel. Porque não? Alterações e modificações que vão interferir na vida de milhares de jovens não podia ser assim. Muitas vezes vi que a condução de fóruns, congressos e mutirões onde participavam jovens era fácil modificar. A maioria aprovava sem pestanejar. Deixei que Ventania continuasse seu raciocínio. – Pretendo Chefe voltar às origens. Vou pagar do meu bolso a confecção dos distintivos. Vou conseguir as estrelas de prata. E sem maiores comentários vou criar uma nova tropa começando do nada. Oito jovens. Meus futuros monitores. Quatro meses preparando. Depois a promessa deles. Aumentar as patrulhas à medida que for aparecendo interessados, assim vou ver se em um ano tenho quatro.

             - Mas Ventania eu disse, fará isto no seu grupo? Sim Chefe. Deixarei que os demais continuem como estão sem interferir. - E acha que vai dar certo? – Não sei. Vou tentar. Vou voltar ao velho Sistema de Patrulhas. Vou trabalhar com monitores. Dar a eles liberdade. Sem essa de novos tempos, criminalidade e etc. Farei tudo com a máxima segurança. Em seis meses já vão acampar sozinhos. Estarei na redondeza em alguns horários. O forte será atividades ao ar livre. Deixar que eles façam. Aprendam a fazer fazendo. Cada um com sua ficha 120. Vendo como estão e como poderão atingir a segunda e primeira classe. Em um ano e meio começarei a fazer as jornadas. Isto mesmo. Nos moldes de antes. Aventureira. Claro já disse o local bem escolhido, nada fora do combinado, previamente discutido e escolhido o pernoite. – Danado o Ventania. Estava fazendo o que eu sempre desejei.

           - A esposa do aniversariante chamou a todos para cantar os parabéns. Ninguém queria ir. "Velho"! E então? O que aconteceu queriam todos saber. – O "Velho" naquele seu jeitão teatral levantou, enfiou a mão do bolso da camisa e lembrou que não mais cachimbava e disse – Na volta. Vamos cumprir nossa obrigação com nosso amigo. Aquela algazarra já conhecida do parabéns a você. Comer bolo, outra cerveja e conversando com o aniversariante vi que todos carregavam o "Velho" para o quintal. Pedi desculpa e fui correndo também. Ainda bem que o "Velho" não tinha começado. Estava fazendo um jogo. Danado de "Velho". Nada como um bom jogo para animar. Achar a pista no Kim do Luar não é fácil. Já conhecia. Mas adorava o jogo.

         - Terminado alguém disse – E aí "Velho"? E o Capitão Ventania conseguiu o que queria? Bem, alguém o “dedurou” no Distrito. Mandou-os irem passear. A região interferiu. Entrei na parada. Deixem que ele faça a experiência. É uma tropa somente. Vocês tem medo de que? – Eu não era bem quisto por eles, mas tinham certo respeito. Não disseram nada. Sou que eu e o Ventania fomos parar em uma Comissão de Ética na direção nacional e na Região. Não deu nada, mas podia dar. Durante um ano visitei as reuniões do Capitão Ventania. Dava gosto de ver os meninos uniformizados de caqui e chapelão. Sim todos tinham. Como conseguiram? Ventania dizia que nada é impossível para quem sonha e faz o sonho se realizar. Ele modificou alguma coisa nas provas. Aprovou parte do novo programa, mas sem deixar a segunda e primeira classe. Quando os primeiros escoteiros fizeram um ano, receberam suas estrelas de metal. A primeira tropa que ainda estava com o programa antigo começou a reclamar.

           - Um dia pediram para fazer uma Corte de Honra com as duas tropas. Viram que a nova estava com vinte e seis escoteiros e eles com dezoito. Por quê? Porque não saiam ninguém e a deles sempre novatos? A experiência do Ventania estava chegando ao fim. O que ele queria provar a si próprio aconteceu. A maioria dos jovens participantes adorava o sistema, a maneira de condução e quando cinco receberam a primeira classe foi uma festa. As jornadas que fizeram ficou para a história. Ventania dois anos depois teve um câncer de próstata. Não dava mais para continuar. Mesmo tratando ele viveu mais três anos. Neste período o novo Chefe que assumiu instruído por um novo assessor pessoal formado nos moldes atuais, voltou às origens de hoje. Nos cursos de formação mostravam para ele que o escotismo não era o que o Ventania fazia. Aí meus amigos, a tropa começou a definhar. Era muito um grupo ter duas tropas. Em um ano a tropa do Ventania acabou. Alguns dos membros foram incorporados à outra tropa. O uniforme agora era novo. As provas de classe e as estrelas de atividade eram de pano. E de pano eles acharam que era o novo escotismo que não estavam mais gostando. Os jovens do Ventania se debandaram.

          - Eu mesmo cutuquei o distrito e a região se por acaso tentaram ver as vantagens do que Ventania fez. Não deram bola. Insisti – Mas nem mesmo sua experiência viram se foi válida ou não? Afinal ele mostrou que o caminho para o sucesso é provar que vale a pena mudar dentro de bases reais. E vocês nunca fizeram isto. Vão mudando ao sabor do vento e da tempestade. Muitas vezes copiando o que se faz no exterior e esquecendo que parte do passado tem sua validade. Nem me deram bola. Não gostavam de discutir, pois se achavam acima de tudo. Uma das novas dirigentes, uma Escotista então se vangloriava das mudanças. Usava um palavreado difícil aos meus ouvidos. Gosto mais da prática. Do real. De tocar e sentir. De ver dar certo.

          - E o Ventania perguntaram? Morreu três anos depois. Morreu feliz. Disse que tinha vencido. Sabia que sua experiência só valeu para os meninos que participaram. E ele se sentia vitorioso. Não importava se aqueles que mudaram tudo não deram valor. – Ventania. Capitão Ventania, quem diria. Para mim um alegre Chefe e suas estripulias mirabolantes. – Fiquei olhando o "Velho" Escoteiro. Quase oito anos de convivência. Cada dia mais e mais aprendia. Quando achava que sabia tudo lá vinha ele contando novidades me mostrando um caminho novo para achar a trilha do sucesso. Uma hora da manhã. Minha esposa veio me chamar. Amanhã é segunda, dia de palavrão ela sempre dissera isto. Eu gostava da segunda feira. Gostava do meu trabalho. Os amigos e companheiros que lá estavam eram para mim como irmãos. Anos e anos de convivência. Não seria bom que no escotismo fosse assim também?

Vão para o diabo sem mim
Ou deixem-me ir sozinho para o diabo
Porque havemos de ir juntos?

Álvaro de Campos