sexta-feira, 31 de agosto de 2018

Crônicas de um Velho Chefe Escoteiro. A Lei da Selva e as leis dos homens.



Crônicas de um Velho Chefe Escoteiro.

Nota - Rudyard Kipling narra à história do menino-lobo Mowgli e apresenta uma visão sofisticada da relação entre humanos e a natureza.

                         O escritor Rudyard Kipling é um representante perfeito daquilo que os acadêmicos de hoje desprezam. Já foi tachado de imperialista, racista, reacionário e de todo tipo de adjetivo que a histeria politicamente correta procura impingir àqueles nomes difíceis de enquadrar nos cânones da leitura simplista da história que divide a humanidade em duas metades – uma ocupada em dominar e maltratar a outra. No final de sua vida, enquanto o Império Britânico ruía, Kipling caía em desgraça. Passou a ser visto como um ideólogo do domínio sobre outros povos e países, sobretudo a Índia, onde nascera e passara a primeira infância, nos anos 1860.

                        Quando escreveu seu clássico Orientalismo, mais de 100 anos depois, o intelectual palestino-americano Edward Saïd escolheu um trecho de um conto de Kipling, “Servos da rainha”, para ilustrar a submissão do Oriente ao Ocidente: “Mula, cavalo, elefante ou boi, ele obedece ao seu condutor, e o condutor ao sargento, e o sargento ao tenente, e o tenente ao capitão, e o capitão ao major, e o major ao coronel, e o coronel ao brigadeiro que comanda três regimentos, e o brigadeiro ao general, que obedece ao vice-rei, que é um servo da imperatriz”. Está aí, resumida numa frase, a hierarquia a que estavam sujeitos os súditos de Sua Majestade nos tempos de Kipling.

                      Animais em baixo, homens comuns no meio, militares acima – nobres e a rainha lá no alto. A obra de onde Saïd tirou a frase, Os livros da selva, é a mais conhecida de Kipling. O motivo são os contos que narram à história do menino-lobo Mowgli, abandonado e criado numa alcateia no meio da selva – ou Mowgli, na grafia adotada em português no novo filme da Disney, que tem quebrado recordes de bilheteria.

                      O fascínio exercido por Mowgli em adultos e crianças até hoje desmente os críticos de Kipling. Sua visão da relação entre o homem e a natureza e entre os diversos povos nada tem de simplista. É limitador considerar Os livros da selva – são dois; Mowgli aparece em oito dos 15 contos – apenas uma alegoria da dominação imperial ou da hierarquia social do final do século XIX. A narrativa de Kipling faz uma reflexão profunda, apenas pincelada no filme, sobre o que distingue homens de animais. Se há simpatia do autor por um dos lados, ela certamente está com os bichos, transformados em exemplos de valentia, astúcia, sabedoria, ternura e amor.

                     O herói que mata o cruel tigre Shere Khan é um menino, dividido o tempo todo entre seu lado homem e seu lado animal; entre sua mãe loba na selva e aquela que se diz sua mãe na aldeia; entre seus amigos bichos – um urso, uma pantera-negra, um píton e seus irmãos lobos – e sua humana solidão existencial. “Essas duas coisas brigam dentro de mim assim como as cobras brigam na primavera”, diz ele a certa altura. “Eu sou dois Mowgli, mas a pele de Shere Khan está sob meus pés.”

                      O urso Baloo – mais sério e sábio que o hippie simpático do desenho animado de 1967, repetido no filme em cartaz – que ensina a Mowgli a Lei da Selva. Sua essência não está apenas na obediência, vista como anátema pelos críticos de Kipling. Está também na regulação sofisticada de um ambiente em que a morte é necessária para alimentar a vida. Alimentos e água se tornam escassos, e apenas a Lei da Selva garante a sobrevivência das espécies, no ciclo eterno de eras e estações da natureza. Na alcateia de Mowgli, a lei ensinada por Baloo é repetida por todos os lobinhos: “Esta é a Lei da Selva, tão antiga e imutável quanto o céu; quando um lobo a viola, ele morre, mas prospera o lobo que é fiel. Como a hera que envolve o tronco, a lei sobe, desce e volteia – pois a força da alcateia é o lobo, e a força do lobo é a alcateia”.

                     É a lei anterior às religiões, à escrita, às constituições e aos tribunais. É a lei de todo grupo que precisa permanecer unido para sobreviver, daqueles que se protegem porque nada mais há para protegê-los, do “nós” contra “eles”, das máfias e partidos. Necessária, mas insuficiente para Mowgli. Quando, no penúltimo conto, sobrevém o ataque dos selvagens cães vermelhos, ele usa sua astúcia para conduzi-los às abelhas ferozes; depois sucede o enfrentamento sangrento da alcateia com a matilha, que termina com dúzias de mortos.

                     – Uma cena ausente do filme, que revela toda a arte de Kipling como narrador. Mowgli cresce e, aos 17 anos, incapaz de resolver seu conflito interior, vai buscar abrigo entre os homens. Os livros da selva terminam aí. Mas o primeiro conto que Kipling escreveu sobre Mowgli, “No Rukh”, ficou de fora. Mostra Mowgli anos depois de sair da selva, quando ele usa seus talentos para se tornar funcionário de um parque florestal. Sem deixar de ser selvagem, Mowgli começa a entender como as leis dos homens protegem mais que a da selva. Para desespero de tribos e alcateias, casa-se com a mulher por quem se apaixonara – uma muçulmana.