terça-feira, 15 de setembro de 2015

Os dois lados da razão.


Crônicas de um Velho Chefe Escoteiro.
Os dois lados da razão.

             Para mim o escotismo tem duas interpretações. Uma há que eu vivi no passado, um escotismo livre, sem amarras, sem lideres nacionais a dizerem o que fazer ou como fazer. Certo ou errado era um escotismo audacioso, cheio de sonhos aventureiros, fazer fazendo, gostando da chuva, do vento, das marchas em montanhas e afins. A outra é a de hoje, um escotismo dirigido por adultos que se apegaram nas suas experiências de um escotismo moderno a dizer o que fazer e como fazer. Eles decidem tudo para os jovens, escrevem normas, planejam programas, se vangloriam quando criam uniformes e afins. Muitos deles acham que as ideias de Baden-Powell serviram no passado. E os jovens? Aos poucos vão sendo alienados com uma perspectiva que não leva a sonhos aventureiros, a molhar na chuva. O medo do adulto mau, da marginalidade, do acidente imprevisível e isto deu outra conotação ao escotismo. Os jovens não podem mais respirar a liberdade de correr pelos campos com suas bandeiras ao vento. Ou será que pode?

              Um era o escotismo de decisão, de poder ter responsabilidade na infância e o outro submisso, recebendo tudo nas mãos e nunca podendo opinar. Criaram até uma organização que chamam de Jovens Lideres. Estes têm entre 18 a 26 anos. Jovens? Bem eles dizem nossos dirigentes opinam, decidem são consultados e os outros que não tem esta idade? Não podem opinar. Recebem tudo pronto e é como lhe dissessem – Aceite, é para você se divertir! Se não gostar é só pedir para sair. Infelizmente um escotismo ficou no passado, o outro enraizado no presente. São os dois lados da razão. O de hoje sabe que não vai mudar nada do que foi no passado e o de ontem sabe que nunca irá prevalecer para o presente.

Um domingo qualquer lendo a Folha de São Paulo me deparo com um artigo de um articulista que escreveu seu relato de escotismo na Revista da Folha. Seu nome? Fabricio Corsaletti. Ele reveza um domingo sim outro não com outra articulista. Chamou-me atenção o que ele escreveu. Transcrevo abaixo o artigo completo:

Ilha solteira e depois.
Uma vez por ano os escoteiros do Brasil inteiro se reuniam em Ilha Solteira, na divisa com o Mato Grosso do Sul, numa espécie de congresso nacional de pirralhos acendedores de fogueira, armados de facões e canivetes e com chapéus iguais ao dos Guardas Florestais do Zé Colmeia. Mas eu não estava me sentindo bem. Era o meu terceiro acampamento desde que tinha entrado pró-escotismo, o primeiro em Ilha Solteira, e no instante em que soquei minha mochila no fundo da barraca eu soube que estava a um passo de desmoronar. Escoteiros são um pouco como militares: Machos, implacáveis e contrários a grandes variações de humor. E meu humor estava por um triz.

Quando entrei no banheiro de ralos entupidos, onde outros trinta meninos tomavam banho, e a água subiu quase até meu joelhos, tive que fazer força prá não chorar nem vomitar. Senti falta de casa. Meus olhos se encheram de lágrimas. Se alguém percebesse, eu estava morto. Por sorte, naquela noite chegaram as bandeirantes, as escoteiras. Agora a minha saudade não era mais de casa, mas sim de um único cômodo, o quarto da Paula, lugar de reunião de suas amigas, que me deixavam ficar sentado num canto, ouvindo a conversa delas. A lembrança do quarto da minha irmã me deu forças; entre as bandeirantes eu também ficaria à vontade. A vida voltaria a fluir.

Enfiei-me no meio delas, e a mais alta como que se iluminou. Tinha a pele morena e lisinha feito um Danette de chocolate, sobrancelhas grossas, olhos pretos muito vivos e pernas compridas dentro de galochas vermelhas. Era séria. Devia ser profunda. Provavelmente estava odiando aquela confraternização idiota. Fiquei empolgado por tê-la descoberto. Tomamos um sorvete na cantina do parque em que estávamos acampados. Contei a ela que ouvia Ramones, que andava de skate e que tinha problemas com o Chefe da minha patrulha. Eu tocaria fogo no acampamento se ela quisesse. Eu a acompanharia até o Alasca e além.

As minhas perguntas ela respondia de maneira vaga, estranha. Hoje sei que essas perguntas giravam em torno de um mesmo tema e poderiam ser resumidas assim:
- O que um docinho como você veio fazer nesta pocilga? – Acontece que o docinho era filha do Chefe mais pentelho, o gordão de risada sinistra, e se vangloriava de ser uma bandeirante exemplar. Cumpria as leis de Baden-Powell (infelizmente não o musico) à risca. Não tinha uma única gota de romantismo no sangue. Sua fama (quem foi o animal que me contou tudo isso?) corria o sertão de Goiás. Lembro que o nome de Corisco foi citado.

Na noite seguinte a cangaceira juntou três amigas. Elas subiram no palco (não era o prenúncio das P. Riot acreditem), pegaram o microfone e gritaram em uníssono:
 - Fabrício de Santo Anastácio você não é um Escoteiro de verdade! – Nem escoteiro nem nada e cada vez mais propenso à mudança de humor. Mas por que resolvi desencavar essa história? Porque há um clima de escotismo no ar. No meu bairro ou nos jornais, nas rodas literárias ou no Brasil e no mundo.
- Não custa ficar esperto.

             Fico matutando se o jovem Fabrício não teve uma infância escoteira feliz. O que escreveu não machuca, não desfaz o sonho dos jovens. Mas será isto o escotismo que queremos? Quando teremos jovens como o Fabrício fazendo um bom escotismo, amando-o como se ama a si mesmo, e crescendo vai alardear aos quatro ventos o que é o verdadeiro escotismo? Já vi outros escrevendo e até um que denegriu e muito a imagem do Movimento Escoteiro. Nunca teremos apoio de autoridades se não fizeram um escotismo puro como queria BP. Dependemos de um e outro que escrevem o que acharam e a maioria de hoje não tem boas lembranças. Dependemos muito de normas, de programas que não foram idealizados pelos jovens. Sempre temos aqueles que não viveram o escotismo de antes e enxergam somente o de hoje. Não os culpo. Fazem o que aprenderam e defendem com unhas e dentes aquilo que lhes foi ensinado.


O mote é de Baden-Powell que dizia: - É uma pena que um homem tenha que viver sessenta anos para adquirir alguma experiência de vida e a leve para o túmulo, cabendo aos que o seguem começar tudo de novo, cometendo os mesmos erros e enfrentando os mesmos problemas... Sem nada mais a dizer!