segunda-feira, 26 de setembro de 2016

Chico Cerca. Ele era um analfabeto.


Crônicas de um Velho Chefe Escoteiro.
Chico Cerca. Ele era um analfabeto.

                 Vez ou outra vejo amigos ou não publicando sobre os erros de português de muitos que viajam nas páginas do Facebook. Sei que as intenções são as melhores, pois temos realmente uma população que deixa a desejar na sua escolaridade, vejamos: Para a UNESCO, “uma pessoa funcionalmente analfabeta é aquela que não pode participar de todas as atividades nas quais a alfabetização é requerida para uma atuação eficaz em seu grupo e comunidade, e que lhe permitem, também, continuar usando a leitura, a escrita e o cálculo a serviço do seu próprio”. Perfeito. Data vênia eu me penitencio. Sempre soube que fui e ainda sou um analfabeto, pois minha vivencia foi feita na escola da vida. Quando iniciei minha saga de pseudo escritor, meus erros eram enormes (Ainda são). Muitos me escreviam dizendo que eu precisava melhorar para ser entendido, que devia entrar em uma escola e outros educadamente se ofereceram para revisar meus artigos e contos. Desistiram logo quando viram a quantidade. Risos.

                  Se não fosse o Word eu estaria perdido na Selva de Mowgly. Nele eu me arranchei nas margens do Rio Waingunga e lá assentei praça escoteira até hoje. Ele me ajuda “pacas”. Continua ainda os erros de concordância, pontuação e demais amarras da língua portuguesa. Nunca digo para que os demais façam como eu. Eu sei que cada um sabe onde amarrar seu cadarço para não se esborrachar no chão. Recebo dezenas de e-mails, contatos no Facebook e até cartas (usam ainda os Correios do Brasil). Entendo tudo que escrevem. Fico feliz pelo esforço e sempre respondo. Nunca critiquei ou deixei de responder. Nunca corrigi os erros e se eles o cometeram foi porque não tiveram a oportunidade que outros tiveram e se esforçaram para conquistar um lugar ao sol nos meios educacionais. Quando fui Chefe tive orgulho da minha atuação. Até hoje recebo cartas e-mail e outros dos meus antigos escoteiros. E olhe que já era meio analfabeto. Quando Comissário um Escoteiro Chefe me disse certa vez: Vado Escoteiro tome cuidado com os analfabetos, os desdentados os mal vestidos, eles podem dar uma falsa impressão do que podemos realizar na formação da juventude.

                  Sei não. Não desmereço nunca uma boa formação intelectual. Ela faz parte do crescimento interior e espiritual. Se não for hoje viremos novamente a terra para crescer nos estudos e na formação moral. Ainda ontem vi alguém corrigindo um ser vivente que rabiscava suas poucas letras querendo participar mais de suas lembranças, passagens, e porque não contar que também é um ser humano. Isto me fez voltar no tempo e lembrei-me do Chico Cerca. O conheci em um curso e apesar de não sermos da mesma patrulha ficamos amigos por todo o sempre. Era analfabeto de pai e mãe como dizem por aí. Um dos diretores viu logo o simplório, pois ele não escrevia nada no seu caderno (antigamente era distribuído um para anotações nos cursos). Chamou-o em particular e disse que só daria a ele o certificado de aprovação quando aprendesse a ler e escrever. Pelo menos. Hoje não sei se dariam esta oportunidade a ele.

                 O tempo passou e um belo dia fui fazer uma visita a sua Tropa em uma cidade próxima a minha. Fui de bicicleta com mais seis chefes amigos. Fomos recebidos como reis. Insistiram que fossemos hospedar em suas casas, mas levamos barracas e dormimos nela. Fiquei mais amigo dele que nunca. Chico Cerca era um apelido. Ele era um construtor e consertador de cercas das fazendas da região. Por isto o apelido. Seu nome era Francisco de Arimatéia. Olhe meus amigos nunca vi tanta gente o abraçando, e falando tão bem dele que fiquei surpreso. Eram tantos pais que foram escoteiros dele, falando maravilhas de sua chefia que pensei que o saber não era tanto para ser um bom Chefe Escoteiro. O próprio prefeito veio até a mim para dizer que homens como Chico Cerca são poucos. Ficamos lá dois dias e me encantei com a cidade e seus habitantes. Uma fraternidade que dava lições enormes as outras tantas espalhadas pelo Brasil.


                   No dia da partida perguntei: - Chico conseguiu receber seu certificado? Ele riu. Um sorriso gostoso, amigo sincero cheio de amor para dar. – Vado, nunca me enviaram. Um dia sonhei em ter pelo menos o anel de Gilwell, mas nem ele um dia vou usar. Para dizer a verdade entrei em uma escola noturna. Aprendi a ler e escrever com dificuldade. Foi bom, pois agora consigo ler mesmo devagar os livros que comprei de Baden-Powell. O Doutor Morgado, Juiz de Direito da cidade chegou abraçando Chico. Olhou-me e disse: - Fui seu Escoteiro, devo o que sou a ele. Chico escreveu para mim seu endereço da sua nova casa. Trabalhou muito para comprar. Vi que ainda eram garranchos cheios de erros de português. Eu sempre soube que Chico nunca iria ter uma medalha, um agradecimento dos Lords Escoteiros. E daí? Eu na minha simplória memória escoteira o guardei para sempre no meu coração. Eu sempre aconselho aos jovens que devem estudar muito. Sempre digo a todos que o estudo é muito importante para o seu sucesso e seu futuro. Mas me desculpem. Nunca vou condenar aquela que na sua simplicidade tem erros homéricos de português! Afinal, ele é um ser humano que merece nosso amor e consideração.