sexta-feira, 7 de novembro de 2014

Eu gostaria de poder morrer em paz!


Crônicas de um Chefe Escoteiro.
Eu gostaria de poder morrer em paz!

                   Há muitos e muitos anos eu li um romance de ficção, cujo nome não me lembro e nem tenho certeza se foi escrito pelo escritor Isaac Asimov. Não vou contar a história, mas sim uma parte que me chamou atenção. No futuro os cientistas inventaram uma fórmula de sangue humano, que aplicada daria sobrevida por muitos anos aos habitantes do planeta. Em pouco tempo ninguém mais morria e os cemitérios foram abandonados e extintos. Se alguém resolvesse não mais fazer a transfusão quando morria era cremado. Durante mais de quinhentos anos a terra praticamente ficou estável. Como já havia pessoas com trezentos quinhentos ou mais anos o interesse da perpetuação da espécie diminuiu e praticamente as crianças não existiam mais. A história comenta o novo estilo de vida, de homens e mulheres que a cada centena de anos se casavam novamente ou daqueles que resolviam terminar suas vidas como velhos e poder morrer em paz.

                    Eu hoje tenho 73 anos. Não ambicionaria poder viver muito. O choque de gerações é enorme. Meu passado era de dizer sim senhor, beijar as mãos dos tios e avós e jogar bolinha de gude, soltar papagaios com o prazer de vê-lo voltar molhado do céu. Tive o orgulho de fazer um escotismo aventureiro e aprendi com meus amigos de patrulha e de tropa a aprender a fazer fazendo longe de adultos. Olho a juventude de hoje, passa longe daquela do passado. Meninos e meninas com um celular na mão, que nem se dão conta que tem pessoas a sua volta. Os cumprimentos para eles não existem e suas vidas resumem a ficar blogados, ir a escola, ter em seu quarto a parafernália eletrônica que tem direito e a noite correr para as baladas. As roupas são de marca e adoram quando sai um novo estilo de tênis, de camisetas sem contar o indefectível boné virado para trás. Um Chefe outro dia me disse que bússola, ler mapas, percurso de gilwell ou mesmo sinais de fumaça ou de pista é passado. Para isto existe o GPS. Ele ria quando me disse que as barracas modernas se armam com um simples apertar de um botão. Disse também que seus jovens esperam o novo skate voador, pois assim não irão mais andar a pé.

                    Brincadeiras a parte é uma verdade que o mundo mudou. E como mudou. Eu tenho hora que fico deslocado. Hoje fazendo minha caminhada e meus exercícios físicos em um centro esportivo próximo a minha casa, uma jovem ao telefone falava alto nem se preocupando com quem estava a sua volta. Brigava e discutia com seu namorado. Ficou mais de quarenta minutos falando e como falava. Depois sentou em um banco e ali ficou olhando sua tela de celular que devia ser moderno. Hora de internetar no Facebook ou outra rede social. Já tenho netos que quando os pais me visitam eles ficam na sala ou na varanda de olho na sua telinha e ficam lá horas e horas. Dizem que andam pelas ruas assim, nos ônibus nos metrôs ou em carros da família. Quantas mudanças aconteceram. Eles estão certos e eu errado? Claro que eu estou errado. Minha época já passou. Minha vida de outrora não vai interessar a eles.

                      Escrevo muitas histórias sobre Escoteiros, lobos, seniores e guias, chefes e dirigentes. Ainda escrevo como no passado. Neles este modernismo ainda não participa nem pede carona. Noto que quem mais me lê são chefes mais maduros e os jovens dificilmente acompanham a não ser quando o tema interessa a eles. Acompanho a Direção Nacional em suas modificações e dizendo que temos que acompanhar a nova era. Francamente não é o escotismo que fiz e nem sei se aquele escotismo de outrora vai interessar a eles. Dizem que as tradições são coisas de um passado e devem ser enterradas para uma nova vida de modernismo. Quantos mesmo acampando, excursionando, fazendo atividades aventureiras aparecem nas redes sociais dizendo o que estão fazendo, aonde vão e o que estão sentindo. Quando menino recém passado para a tropa em uma atividade de um domingo resolveu explorar sozinho o barulho de uma cascata. Enquanto a patrulha cochilava lá fui eu. Perdi-me. Duas horas depois o Monitor me encontrou. Nunca esqueci aquele dia. Se tivesse um GPS não teria me perdido e nem tampouco teria história para contar.

                      Acredito que se tivesse forças eu não seria um bom Chefe Escoteiro. Pais que processam grupos ou chefes por erros ou acidentes querendo indenizações improcedentes. Dirigentes que sem ninguém autorizar se tornaram autoritários e em nome da organização se apossaram do escotismo que dizem ser deles. Muitos dirigentes nacionais, regionais e distritais que querem definir o que os jovens e os chefes devem fazer. Exigem do grupo e chefia o cumprimento do dever que está escrito em seus domínios, uniformes que não condizem com meu pensamento de garbo e boa ordem. Palavreado que não condizem com minha educação familiar e Escoteira. Portanto se algum dia ainda no final da minha vida que me resta inventarem uma fórmula deste sangue humano do conto do Asimov, eu prefiro ficar como estou. Viver cem duzentos ou mais anos seria de uma tristeza atroz. Acho que setenta oitenta e ou noventa anos já é demais. Melhor morrer e renascer novamente dentro de uma época, onde me adaptarei mais facilmente e que crescerei com ela sem ter as surpresas de uma mudança tão radical como foi a minha.

                       Eu fui feliz como fui e tenho certeza os jovens de hoje são felizes como são. Existe aí um choque de gerações e para isto o melhor é os velhos se afastarem deixando de agir, comentar ou sugerir o que suas vidas lhe deram. Não existe interesse nisto pela juventude de hoje. Ela é bem mais madura, sabe onde pisa e para onde vai. Mas será que eu acredito mesmo nisto? Ainda fico pensando se a disciplina sem violência deveria existir em todos os lares. Se as normas de condutas deveriam existir e não discutir se elas têm ou não valor. Se o respeito e a educação ainda deviam ser normas de comportamento. Certo ou errado fico deslocado no tempo quando um jovem ou uma jovem ao meu lado não me olha, não me cumprimenta e fica de olhos firmes na sua parafernália eletrônica que tem as mãos.


                      Portanto meus amigos, eu nunca iria lutar para viver mais. Aqui não é mais o meu lugar. Hoje professores têm que pisar em ovos para dar aulas, pais não tem mais controle sobre seus filhos, a liberdade chegou a tal ponto que os drogados podem se drogar onde quiserem. Providencias de ajuda só se eles pedirem. Menores roubam matam e fica por isto mesmo. Tubarões se encastelam no governo para encher os bolsos de dinheiro. Incrível, enquanto eu não tenho um tostão eles passeiam de carro, aviões e outros com milhares de reais, dólares ou euro nos bolsos e ou nas cuecas. E quando são presos ficam alguns dias e saem sorrindo dizendo ser perseguição politica. Melhor mesmo é ir para o outro lado da vida. Sei que aqui voltarei e quem sabe já teremos um mundo em que irei me adaptar melhor. Portanto não me levem a mal, que eu viva os anos que Deus me reservou e que eu possa morrer em paz!