Crônicas de
um Chefe Escoteiro.
Eu gostaria
de poder morrer em paz!
Há muitos e muitos anos eu
li um romance de ficção, cujo nome não me lembro e nem tenho certeza se foi
escrito pelo escritor Isaac Asimov. Não vou contar a história, mas sim uma
parte que me chamou atenção. No futuro os cientistas inventaram uma fórmula de
sangue humano, que aplicada daria sobrevida por muitos anos aos habitantes do
planeta. Em pouco tempo ninguém mais morria e os cemitérios foram abandonados e
extintos. Se alguém resolvesse não mais fazer a transfusão quando morria era
cremado. Durante mais de quinhentos anos a terra praticamente ficou estável.
Como já havia pessoas com trezentos quinhentos ou mais anos o interesse da
perpetuação da espécie diminuiu e praticamente as crianças não existiam mais. A
história comenta o novo estilo de vida, de homens e mulheres que a cada centena
de anos se casavam novamente ou daqueles que resolviam terminar suas vidas como
velhos e poder morrer em paz.
Eu hoje tenho 73 anos. Não
ambicionaria poder viver muito. O choque de gerações é enorme. Meu passado era
de dizer sim senhor, beijar as mãos dos tios e avós e jogar bolinha de gude,
soltar papagaios com o prazer de vê-lo voltar molhado do céu. Tive o orgulho de
fazer um escotismo aventureiro e aprendi com meus amigos de patrulha e de tropa
a aprender a fazer fazendo longe de adultos. Olho a juventude de hoje, passa
longe daquela do passado. Meninos e meninas com um celular na mão, que nem se
dão conta que tem pessoas a sua volta. Os cumprimentos para eles não existem e
suas vidas resumem a ficar blogados, ir a escola, ter em seu quarto a
parafernália eletrônica que tem direito e a noite correr para as baladas. As
roupas são de marca e adoram quando sai um novo estilo de tênis, de camisetas
sem contar o indefectível boné virado para trás. Um Chefe outro dia me disse
que bússola, ler mapas, percurso de gilwell ou mesmo sinais de fumaça ou de
pista é passado. Para isto existe o GPS. Ele ria quando me disse que as
barracas modernas se armam com um simples apertar de um botão. Disse também que
seus jovens esperam o novo skate voador, pois assim não irão mais andar a pé.
Brincadeiras a parte é uma
verdade que o mundo mudou. E como mudou. Eu tenho hora que fico deslocado. Hoje
fazendo minha caminhada e meus exercícios físicos em um centro esportivo
próximo a minha casa, uma jovem ao telefone falava alto nem se preocupando com
quem estava a sua volta. Brigava e discutia com seu namorado. Ficou mais de
quarenta minutos falando e como falava. Depois sentou em um banco e ali ficou
olhando sua tela de celular que devia ser moderno. Hora de internetar no
Facebook ou outra rede social. Já tenho netos que quando os pais me visitam
eles ficam na sala ou na varanda de olho na sua telinha e ficam lá horas e
horas. Dizem que andam pelas ruas assim, nos ônibus nos metrôs ou em carros da
família. Quantas mudanças aconteceram. Eles estão certos e eu errado? Claro que
eu estou errado. Minha época já passou. Minha vida de outrora não vai
interessar a eles.
Escrevo muitas histórias
sobre Escoteiros, lobos, seniores e guias, chefes e dirigentes. Ainda escrevo
como no passado. Neles este modernismo ainda não participa nem pede carona.
Noto que quem mais me lê são chefes mais maduros e os jovens dificilmente
acompanham a não ser quando o tema interessa a eles. Acompanho a Direção
Nacional em suas modificações e dizendo que temos que acompanhar a nova era.
Francamente não é o escotismo que fiz e nem sei se aquele escotismo de outrora
vai interessar a eles. Dizem que as tradições são coisas de um passado e devem
ser enterradas para uma nova vida de modernismo. Quantos mesmo acampando,
excursionando, fazendo atividades aventureiras aparecem nas redes sociais
dizendo o que estão fazendo, aonde vão e o que estão sentindo. Quando menino recém
passado para a tropa em uma atividade de um domingo resolveu explorar sozinho o
barulho de uma cascata. Enquanto a patrulha cochilava lá fui eu. Perdi-me. Duas
horas depois o Monitor me encontrou. Nunca esqueci aquele dia. Se tivesse um
GPS não teria me perdido e nem tampouco teria história para contar.
Acredito que se tivesse
forças eu não seria um bom Chefe Escoteiro. Pais que processam grupos ou chefes
por erros ou acidentes querendo indenizações improcedentes. Dirigentes que sem
ninguém autorizar se tornaram autoritários e em nome da organização se
apossaram do escotismo que dizem ser deles. Muitos dirigentes nacionais,
regionais e distritais que querem definir o que os jovens e os chefes devem
fazer. Exigem do grupo e chefia o cumprimento do dever que está escrito em seus
domínios, uniformes que não condizem com meu pensamento de garbo e boa ordem.
Palavreado que não condizem com minha educação familiar e Escoteira. Portanto
se algum dia ainda no final da minha vida que me resta inventarem uma fórmula
deste sangue humano do conto do Asimov, eu prefiro ficar como estou. Viver cem
duzentos ou mais anos seria de uma tristeza atroz. Acho que setenta oitenta e
ou noventa anos já é demais. Melhor morrer e renascer novamente dentro de uma
época, onde me adaptarei mais facilmente e que crescerei com ela sem ter as
surpresas de uma mudança tão radical como foi a minha.
Eu fui feliz como fui e
tenho certeza os jovens de hoje são felizes como são. Existe aí um choque de
gerações e para isto o melhor é os velhos se afastarem deixando de agir,
comentar ou sugerir o que suas vidas lhe deram. Não existe interesse nisto pela
juventude de hoje. Ela é bem mais madura, sabe onde pisa e para onde vai. Mas
será que eu acredito mesmo nisto? Ainda fico pensando se a disciplina sem
violência deveria existir em todos os lares. Se as normas de condutas deveriam
existir e não discutir se elas têm ou não valor. Se o respeito e a educação
ainda deviam ser normas de comportamento. Certo ou errado fico deslocado no
tempo quando um jovem ou uma jovem ao meu lado não me olha, não me cumprimenta
e fica de olhos firmes na sua parafernália eletrônica que tem as mãos.
Portanto meus amigos, eu
nunca iria lutar para viver mais. Aqui não é mais o meu lugar. Hoje professores
têm que pisar em ovos para dar aulas, pais não tem mais controle sobre seus
filhos, a liberdade chegou a tal ponto que os drogados podem se drogar onde
quiserem. Providencias de ajuda só se eles pedirem. Menores roubam matam e fica
por isto mesmo. Tubarões se encastelam no governo para encher os bolsos de
dinheiro. Incrível, enquanto eu não tenho um tostão eles passeiam de carro,
aviões e outros com milhares de reais, dólares ou euro nos bolsos e ou nas
cuecas. E quando são presos ficam alguns dias e saem sorrindo dizendo ser
perseguição politica. Melhor mesmo é ir para o outro lado da vida. Sei que aqui
voltarei e quem sabe já teremos um mundo em que irei me adaptar melhor.
Portanto não me levem a mal, que eu viva os anos que Deus me reservou e que eu
possa morrer em paz!