quarta-feira, 24 de janeiro de 2018

Conversa ao pé do fogo. Pisando nas trilhas do passado.


Conversa ao pé do fogo.
Pisando nas trilhas do passado.

                     Chico Bolha me procurou na oficina de meu pai. Fora da escola dava meus pulos consertando rádios à moda antiga. “Quase Miúcha”. “Quase nada”. Biscates para ter um trocado no fim de semana. Era bom na graxa. Tinha minha caixa para ganhar uns trocados na estação. Tanto faz sapatos de donzelas, como botas de meio metro e botinas da turma da roça. Quando o vi sabia que era assunto novo. No domingo chegamos da jornada a Resplendor de bicicleta, portanto não era nada a respeito do próximo acampamento do mês de maio.

                    - Corra! Ele disse. Tem um escoteiro novo no pedaço! – Novo? De onde? – Não sei, vamos lá na sede averiguar. Periquito o lobinho mor da alcateia o levou para lá. Já avisei meio mundo escoteiro! Meu pai estava chegando, acenei e parti como um bólido para a sede. E Sabrina? Não fiquei de vigiar sua janela naquele dia? Ela sabia que eu estaria lá. Iria jogar o cabelo loiro para um lado e outro dar um sorriso, um sinalzinho de xau-xau e fechar a janela novamente. Namoro antigo, mais de dois meses. Pensava que estava na hora de noivar.

                    Chico Bolha suava. Sempre foi assim. Construtor de Pioneirias parecia estar morrendo quando cortava um bambu, media uma vez duas, olhava calculava e lá vinha com o socador para firmar a viga de duas polegadas que iria sustentar sete patrulheiros dos bons nos bancos toscos que ele fazia. Na esquina da Sete de Setembro Papa-léguas o Monitor chegou espavorido com sua Philipps vermelha presente de sua avó no seu aniversário. A sede tava cheia. Uns vinte e cinco escoteiros e uns vinte e dois lobinhos. Sênior não. Todos trabalhando àquela hora.

                   - Ele estava sentado na ponta do círculo embaixo do Abacateiro. Vermelho, eu vi que estava assustado. Todos perguntando e ele gaguejando para responder. Sentei perto dele. Papa-léguas apertou sua mão. Girson da Silva seu irmão escoteiro disse com voz forte. Monitor da Patrulha Lobo e Guia da Tropa Escoteira! O desconhecido sorriu. Estava fardado com uniforme do ar. Todo azulado e distintivo para dar e vender. Nunca tinha visto. Ele gaguejando respondeu: - Gilbert Shuatz, Escoteiro do Rio de Janeiro!

                   O circulo chegou mais a frente, queriam ficar mais próximo e ouvir o Escoteiro do Rio. Era sempre uma festa quando recebíamos a visita de um. No ano passado cinco da Bahia passaram por lá. Foi demais. Um foi dormir e comer na minha casa. Mamãe sempre alegre com os visitantes. Ficaram seis dias e foram para São Paulo. Todos de olhos fixos no uniforme do Escoteiro do Rio. Calça azul, camisa mescla azul clara, meiões pretos, boina tipo Montgomery linda de morrer! E os distintivos? Cada um mais bonito que o outro. O das asas com a flor de lis parecia ouro puro!

                  Aos poucos foi tomando coragem. – Moro em frente à praia do Arpoador (ninguém tinha a menor ideia do que era a tal praia). Sou Escoteiro do Ar, meu pai tem um Teco-Teco e me ensinou a dirigir o “Monstro”. Ele é Comandante e piloto na Panair do Brasil. – Estávamos embasbacados. Contou que acampou na Inglaterra, na Alemanha e nos Estados Unidos. Tinha mais de dois mil distintos na sua coleção! Demais. Um autentico acampador. Ficamos lá ouvindo por horas.

                 Papa-Léguas me chamou, chamou Lagoa Santa o Sub, Nariz longo o intendente, Fumanchu o Cozinheiro e Chico Bolha o Construtor. – Precisamos receber o Menino escoteiro do Rio com honras. Pensei em improvisarmos uma subida no Pico do Ibituruna para ele ver nossa cidade e nossos locais de acampamento. – Lagoa Santa concordou. - Nariz Longo disse que ele era novo. Será que ia aguentar? Voltamos para o circulo. Fizemos o convite. Ele respondeu que ia conversar com Sua Avó onde estava hospedado.

                 O Escoteiro do Rio era o “causo” do dia. Todos procurando Papa-Léguas para ir também. Seniores, escoteiros, lobinhos e até o Balu disse que iria. Até no domingo passeamos com ele na cidade, um banho na Ilha dos Araújo no Rio Doce, comer Ingá que dava aos montes na ponta da ilha. – O dia chegou. Sábado sete da noite todo mundo na sede. Um mundão de gente. Mais de quarenta para acompanhar o Escoteiro do Rio até o Pico do Ibituruna.

                  Até atravessarmos a Ponte de São Raimundo na Rio Bahia tudo bem. Na subida a cantoria empastou o Riacho que passava ao lado, as arvores pequenas pareciam acompanhar. Vi que o Escoteiro do Rio bufava. Vi logo que não estava acostumado. Seis quilômetros de subida. Íngreme. E eis que fomos pego de surpresa. Um trovão um raio esbravejou no ar. Coisa comum, coisa que a gente nem ligava, mas o Escoteiro do Rio não. Começo a chorar e como chorava! – Eu quero Mamãe, eu quero mamãe! Deus do céu! O que era aquilo? Foi então que contou que era lobinho, tinha nove anos e seu pai o presenteou com o uniforme.

                  Foi demais. Como bons escoteiros respeitamos seu choro. Nada de ficar gozando seu medo. Pensávamos que era um super escoteiro do ar, mas era um lobinho “piquitito” da Selva de Seeonee. Nunca fez atividade nunca acampou. Estava morrendo de medo e cansado. Distribuímos sua mochila entre nós, uma turma seguiu para o pico e eu Chico Bolha e Papa- Léguas voltamos com ele. Seus olhos cheio de lágrimas chorava de fazer dó.

                  Uma semana depois ele foi embora. Fui até a Rodoviária e dei nele um abraço. Chico Bolha apertou sua mão. Papa-Léguas o aconselhou a não mais mentir. – Sua hora vai chegar, é só aguardar! Disse. Nunca mais ouvi falar no Escoteiro do Rio. Fico pensando onde ele está agora, deve estar com seus sessenta e tantos anos. E a vida continuou. Ainda as terças ia até a Rua Peçanha para ver Sabrina na janela dando adeusinho para mim. Um dia ela sumiu, mudou de cidade. Curei minhas dores nos acampamentos e excursões escoteiras que vinham em primeiro lugar.  Tempos bons... Tempos que não voltam mais!


Nota - Uma festa. O Escoteiro do Rio chegou à cidade. A escoteirada batia palmas. Ele se sentindo pomposo, um herói um explorador das Minas Gerais. Foi bem recebido, amado e ficamos horas ouvindo suas histórias. Aconteceu, foi verdade. Depois a decepção, não era o que pensávamos. Nunca o esquecemos e o tratamento aos visitantes escoteiros continuou a ser o melhor do mundo! E acredite se quiser... Risos.