Conversa
ao pé do fogo.
Espelho
mágico, espelho meu, existe alguém mais feio do que eu?
Hoje acordei cedo. Ainda
escuro tateando aqui e ali custei a chegar ao banheiro. Rotina de sempre. Fazer
uma limpeza nos poucos dentes que ainda me restam e jogar um pouco de água na
minha face descolorida. O dentista prometeu novos, mas até agora nada. Coloquei
a pasta, abri os olhos, sem perceber olhei no espelho. Mama mia! Levei um susto
dos infernos! Era eu mesmo? Olhei novamente. Nossa! Como tinha ficado feio!
Ainda não me tinha visto desgrenhado, sem camisa e cara de poucos amigos.
Pensei em sorrir e tentei. Nada, continuava feio. Veio-me a mente o que disse
um amigo: - Chefe o feio é inesquecível. Você olha uma vez e o choque é tão
grande que guarda para sempre. Será que sempre fui feio assim? Deixei a mente
voar para o passado. Meu Chefe exigia garbo e se aparecesse com o uniforme sem
passar, cheio de rugas os pontos da patrulha ia para o Beleleu. Naquela época
me olhava no espelho. Menino nem prestava atenção à estampa e sim ao uniforme.
Mamãe tinha um guarda roupa com um espelho enorme. Olhava-me, virava, checava o
cinto, as fivelas o sapato Vulcabrás, e claro as estrias do meião.
Nunca ninguém me disse que
era bonito ou feio. Sempre fui elogiado pelo meu uniforme nos trinques. Lenço
sem ele? Nem pensar. Brinco na orelha? Minino! Naquela época era ser chamado
de... Melhor calar. Nem me passava pela cabeça ter uma flor de lis tatuada no
corpo. Um dia chegamos de trem em Itabira na inauguração do Grupo Escoteiro
local. Chegamos desfilando. Pan, pan pan! Rataplã pan pan! Eu como sempre
garboso, olhar reto, corpo empinado, luvas brancas. Luvas? Isto mesmo. Era uma
norma. Notei que uma morena linda me olhou sorriu e disse para uma amiga: - É o
mais feio de todos! Foi então que me toquei. Era feio? Melhor esquecer e nem
perguntar a Célia, pois já estávamos namorando. Ainda bem que nos acampamentos
não tinha espelho. Cabeludo tinha um e não emprestava a ninguém. Daqueles
redondos pequeno que cabe na palma da mão. No verso a foto de Baden-Powell.
Este era difícil de conseguir.
Nos acampamentos o Chefe não
dava folga. Não tinha hora para inspeção. Apito na veia ou quando ganhou um
Chifre do Kudu adorava buzinar. Dizem que chefes adoram apitar e buzinar. Não
tinha esse negócio de pular na lama. De uniforme? Nem pensar. Podia ficar a
vontade no campo de patrulha de sapato Vulcabrás meião e a calça curta. Podia
ficar de camiseta ou sem ela. Apitou ou tocou, era questão de segundos para
correr a barraca e se uniformizar. E se um carvãozinho passasse de leve na
camisa ou na calça? Tinha de lavar. A gente era craque. Agua sabão, escorrer,
esfregar e secar. Depois usar o ferro de engomar do campo. Ferro de engomar?
Nada que a gente se apertasse. Dois cabinhos amarrado em cada manga preso em um
galho e por baixo um galho forte esticando o pano da calça e camisa. Não ficava
bem passado, mas dava para quebrar o galho. Nunca pedi o espelho ao Cabeludo.
Nem juntei dinheiro para comprar um. Era obrigatório o pente e o lenço. Sempre
no bolso direito. Cabelo despenteado, unhas sujas, nariz escorrendo não é coisa
de escoteiros padrão. Esqueci mesmo no campo a moeda da boa ação no bolso
direito. Afinal boa ação não tem hora ou lugar.
Para dizer a verdade
nunca me dei conta que era feio. A gente acostuma a se ver no espelho e não
indaga – Espelho magico, espelho meu, existe alguém mais feio do que eu? Para
dizer a verdade uma vez em um desfile de Sete de Setembro, passei dias a pensar
se era ou não feio. Lembro que minha mãe engomou meu uniforme caqui, passei uma
goma na aba do meu chapéu, limpei minhas estrelas de metal de atividade, deixei
a fivela brilhando, engraxei meu sapato Vulcabrás cinco vezes, fui me olhar no
espelho notei com satisfação que não era tão feio. Afinal a cidade tinha mais
de cinco mil meninas lindas e uma delas resolveu ser minha namorada. Casamos e
até hoje ela nunca disse que era feio. Mas voltando ao desfile, eu repicava um
tarol e era bom nisto. Sentia-me um fuzileiro na Banda dos Fuzileiros Navais.
Paramos em frente ao palanque das autoridades para fazermos algumas evoluções
exibicionistas de fanfarra. Vi a Primeira dama me apontado e fiquei todo
inchado. Ela chegou bem próximo à viga que separava a banda do palanque e me
disse gritando: - Escoteiro tu és feio de doer!
Aquilo magoou. Quase
chorei. Mas na semana seguinte iriamos acampar no Pico do Papagaio. Eu adorava
subir aquela montanha. Esqueci que me disseram que era feio. No campo minha
mente só tinha visão para minha patrulha, nossas pioneiras e pegar uma bela
traíra a noite. Quem sabe uma ou duas pacas para um churrasco no almoço. Casei
quatro filhos, oito netos e nenhum deles nunca disse que era feio. Então para
minha surpresa me olho no espelho esta manhã. Que feiura meu Deus! Mas sorri
mesmo banguelo. Sorriso danadamente incorreto. Fui ao guarda roupa, peguei meu
uniforme caqui curto, o vesti, coloquei o meião e a botina, bem engraxada é
claro. O chapéu estava bem guardado. Voltei no espelho e disse: Espelho mágico,
espelho meu, existe Escoteiro mais belo do que eu? O espelho calou. Não disse
nada. Quem sabe por que viu um martelo na minha mão direita.
Desta vez sorri.
Orgulhava do que via. Sai do banheiro sorrindo. O espelho se calou, sabia que
eu não era Branca de Neve. Afinal qual vai ser minha aparência quando me for
para as estrelas? Lá eu sei que o brilho será eterno e se deixarem meu uniforme
será bem cuidado, bem engomado e quem sabe quando receber visitas eu sei que
ninguém vai me chamar de feio. Será que lá poderei vestir meu uniforme com
garbo e boa ordem ou irão me obrigar a colocar a tal vestimenta com a camisa
fora da calça e meinha branca?