sexta-feira, 4 de março de 2016

Espelho mágico, espelho meu, existe alguém mais feio do que eu?


Conversa ao pé do fogo.
Espelho mágico, espelho meu, existe alguém mais feio do que eu?

                    Hoje acordei cedo. Ainda escuro tateando aqui e ali custei a chegar ao banheiro. Rotina de sempre. Fazer uma limpeza nos poucos dentes que ainda me restam e jogar um pouco de água na minha face descolorida. O dentista prometeu novos, mas até agora nada. Coloquei a pasta, abri os olhos, sem perceber olhei no espelho. Mama mia! Levei um susto dos infernos! Era eu mesmo? Olhei novamente. Nossa! Como tinha ficado feio! Ainda não me tinha visto desgrenhado, sem camisa e cara de poucos amigos. Pensei em sorrir e tentei. Nada, continuava feio. Veio-me a mente o que disse um amigo: - Chefe o feio é inesquecível. Você olha uma vez e o choque é tão grande que guarda para sempre. Será que sempre fui feio assim? Deixei a mente voar para o passado. Meu Chefe exigia garbo e se aparecesse com o uniforme sem passar, cheio de rugas os pontos da patrulha ia para o Beleleu. Naquela época me olhava no espelho. Menino nem prestava atenção à estampa e sim ao uniforme. Mamãe tinha um guarda roupa com um espelho enorme. Olhava-me, virava, checava o cinto, as fivelas o sapato Vulcabrás, e claro as estrias do meião.

                     Nunca ninguém me disse que era bonito ou feio. Sempre fui elogiado pelo meu uniforme nos trinques. Lenço sem ele? Nem pensar. Brinco na orelha? Minino! Naquela época era ser chamado de... Melhor calar. Nem me passava pela cabeça ter uma flor de lis tatuada no corpo. Um dia chegamos de trem em Itabira na inauguração do Grupo Escoteiro local. Chegamos desfilando. Pan, pan pan! Rataplã pan pan! Eu como sempre garboso, olhar reto, corpo empinado, luvas brancas. Luvas? Isto mesmo. Era uma norma. Notei que uma morena linda me olhou sorriu e disse para uma amiga: - É o mais feio de todos! Foi então que me toquei. Era feio? Melhor esquecer e nem perguntar a Célia, pois já estávamos namorando. Ainda bem que nos acampamentos não tinha espelho. Cabeludo tinha um e não emprestava a ninguém. Daqueles redondos pequeno que cabe na palma da mão. No verso a foto de Baden-Powell. Este era difícil de conseguir.

                   Nos acampamentos o Chefe não dava folga. Não tinha hora para inspeção. Apito na veia ou quando ganhou um Chifre do Kudu adorava buzinar. Dizem que chefes adoram apitar e buzinar. Não tinha esse negócio de pular na lama. De uniforme? Nem pensar. Podia ficar a vontade no campo de patrulha de sapato Vulcabrás meião e a calça curta. Podia ficar de camiseta ou sem ela. Apitou ou tocou, era questão de segundos para correr a barraca e se uniformizar. E se um carvãozinho passasse de leve na camisa ou na calça? Tinha de lavar. A gente era craque. Agua sabão, escorrer, esfregar e secar. Depois usar o ferro de engomar do campo. Ferro de engomar? Nada que a gente se apertasse. Dois cabinhos amarrado em cada manga preso em um galho e por baixo um galho forte esticando o pano da calça e camisa. Não ficava bem passado, mas dava para quebrar o galho. Nunca pedi o espelho ao Cabeludo. Nem juntei dinheiro para comprar um. Era obrigatório o pente e o lenço. Sempre no bolso direito. Cabelo despenteado, unhas sujas, nariz escorrendo não é coisa de escoteiros padrão. Esqueci mesmo no campo a moeda da boa ação no bolso direito. Afinal boa ação não tem hora ou lugar.

                      Para dizer a verdade nunca me dei conta que era feio. A gente acostuma a se ver no espelho e não indaga – Espelho magico, espelho meu, existe alguém mais feio do que eu? Para dizer a verdade uma vez em um desfile de Sete de Setembro, passei dias a pensar se era ou não feio. Lembro que minha mãe engomou meu uniforme caqui, passei uma goma na aba do meu chapéu, limpei minhas estrelas de metal de atividade, deixei a fivela brilhando, engraxei meu sapato Vulcabrás cinco vezes, fui me olhar no espelho notei com satisfação que não era tão feio. Afinal a cidade tinha mais de cinco mil meninas lindas e uma delas resolveu ser minha namorada. Casamos e até hoje ela nunca disse que era feio. Mas voltando ao desfile, eu repicava um tarol e era bom nisto. Sentia-me um fuzileiro na Banda dos Fuzileiros Navais. Paramos em frente ao palanque das autoridades para fazermos algumas evoluções exibicionistas de fanfarra. Vi a Primeira dama me apontado e fiquei todo inchado. Ela chegou bem próximo à viga que separava a banda do palanque e me disse gritando: - Escoteiro tu és feio de doer!

                           Aquilo magoou. Quase chorei. Mas na semana seguinte iriamos acampar no Pico do Papagaio. Eu adorava subir aquela montanha. Esqueci que me disseram que era feio. No campo minha mente só tinha visão para minha patrulha, nossas pioneiras e pegar uma bela traíra a noite. Quem sabe uma ou duas pacas para um churrasco no almoço. Casei quatro filhos, oito netos e nenhum deles nunca disse que era feio. Então para minha surpresa me olho no espelho esta manhã. Que feiura meu Deus! Mas sorri mesmo banguelo. Sorriso danadamente incorreto. Fui ao guarda roupa, peguei meu uniforme caqui curto, o vesti, coloquei o meião e a botina, bem engraxada é claro. O chapéu estava bem guardado. Voltei no espelho e disse: Espelho mágico, espelho meu, existe Escoteiro mais belo do que eu? O espelho calou. Não disse nada. Quem sabe por que viu um martelo na minha mão direita.


                        Desta vez sorri. Orgulhava do que via. Sai do banheiro sorrindo. O espelho se calou, sabia que eu não era Branca de Neve. Afinal qual vai ser minha aparência quando me for para as estrelas? Lá eu sei que o brilho será eterno e se deixarem meu uniforme será bem cuidado, bem engomado e quem sabe quando receber visitas eu sei que ninguém vai me chamar de feio. Será que lá poderei vestir meu uniforme com garbo e boa ordem ou irão me obrigar a colocar a tal vestimenta com a camisa fora da calça e meinha branca?