quinta-feira, 27 de julho de 2017

A embriaguez da primavera. Parte II.


A embriaguez da primavera.
Parte II.

A EMBRIAGUEZ DA PRIMAVERA

“O homem ao homem! É o desafio do Jângal!
Já parte aquele que foi nosso irmão.
Ouvi, então, julgai, ó vós, gente da Jângal
Respondei: quem irá detê-lo então?

O homem ao homem! Ele soluça na Jângal!
O nosso irmão se aflige dos males supremos.
O homem ao homem!  Nós os amamos na Jângal!
Esta é o sua trilha e nós não mais o seguiremos.
Do Livro da Jângal de Rudyard Kipling.

– Dorme, disse a mulher. Foi algum chacal que uivou para os cães. Escondido nos arbustos, Mowgly tremeu. Aquela voz, ele a conhecia. Mas para melhor se certificar, gritou baixinho, surpreso de ver como a língua dos homens lhe vinha fácil:
– Messua! Messua! - Quem chama? A mulher indagou com voz trêmula.
– Nathoo! Respondeu Mowgly, pois fora esse o nome que lhe dera Messua quando o encontrou pela 1ª vez. - Vem meu filho. Ela o acolheu, deu-lhe de beber e comer e apresentou-lhe o irmãozinho. Cansado Mowgly deitou-se e mergulhou em profundo sono.

Quando acordou Messua sorriu e serviu-lhe outra refeição. Nesse instante irmão Gris chamou-o lá fora. Era hora de ir. Messua pôs-se ao lado de Mowgly humildemente ele era realmente um Deus da Jângal, mas quando o viu abrir a porta para sair, a mãe que havia dentro dela a fez abraça-lo várias vezes.

– Volta outra vez, repetiu Messua. De dia ou de noite, esta casa estará sempre de porta aberta pra ti. A garganta de Mowgly apertou-se. Sua voz parecia como que arrancada à força quando respondeu: Sim, voltarei! -E agora, murmurou depois que saiu, tenho minhas contas a ajustar contigo, irmão Gris. Por que vós quatro não viestes quando vos chamei, há tanto tempo? – Tanto tempo? Foi ontem, eu... Nós estávamos cantando no Jângal os novos cantos, porque o tempo das falas novas é chegado. Não te lembras? -É verdade, é verdade...

E logo depois dos cantos, segui teu rastro. Passei à frente dos outros e vim até aqui. Mas, ó irmãozinho, que te aconteceu que estás de novo comendo e dormindo na alcateia dos homens? - Se tivesses vindo quando te chamei, isto nunca se daria, respondeu Mowgly, apressando o passo.

E agora como será? - Perguntou o lobo. - Mowgly ia responder, quando uma mocinha trajada de branco surgiu no caminho que levava À aldeia. Mowgly segui-a com os olhos por entre os talos de milho até que seu vulto se perdeu ao longe. -E agora? Agora não sei... Respondeu finalmente, suspirando. Porque não vieste quando te chamei? Nós te seguimos, murmurou o lobo. Nó te seguimos sempre, exceto no tempo das falas novas.

-E me seguireis na alcateia dos homens também? - -Não o fizemos na noite em que os de Seeonee te expulsaram do bando? Quem te despertou quando dormias nas roças? -Sim, mas me seguireis de novo.

– Não te segui eu esta noite? – Mas me seguireis sempre, sempre, sempre e outra vez, outra vez e outra vez, irmão Gris? O lobo calou-se por uns instante. Quando abriu a boca foi para dizer a si próprio: - A pantera negra falou verdade... ... Que o homem volta sempre para o homem, no fim Raksha, nossa mãe, também disse. E Akelá também na noite do ataque dos Dholes, acrescentou Mowgly. E também Kaa, a serpente da rocha, que possui mais sabedoria do que todos nós.

-E tu irmão gris, que desses tu? Eles já te expulsaram uma vez. Eles te feriram nos lábios com pedra. Eles mandaram Buldeo matar-te. Eles queriam lançar-te na flor vermelha. Tu e não eu, disseste que eles eram muito maus e insensatos. Tu, e não eu, eu sigo meu próprio povo, foste admitido no Jângal por causa deles. Tu, não eu compuseste cantos contra eles, ainda mais amargos que os nossos contra cães vermelhos.

– Para! Que estás dizendo? O lobo gris ficou uns instante calado, depois falou: – Filhote de homem, senhor da Jângal, filho de Raksha, meu irmão de caverna: embora eu fraqueie nas primaveras, o teu caminho é o meu caminho, o teu antro é o meu antro, a tua caça é a minha caça e a tua luta de morte é a minha luta de morte. Falo por mi e pelos outros três. Mas que irás dizer ao Jângal?

Bem pensado. Vai e reúne o conselho na Roca, que quero dizer a todos o que tenho no coração, mas talvez não compareçam: no tempo das falas novas todos se esquecem de mim... – Só isso? Perguntou o lobo Gris, pondo-se em marcha. Em qualquer outra estação aquela novidade teria reunido na Roca o povo inteiro do Jângal; mas era o tempo das falas novas e andavam todos dispersos, caçando, matando. Para um e para outro, corria o lobo Gris com a nova: – O senhor do Jângal volta para os homens! Vamos a Roca do Conselho!

E ruidosos e felizes os animais respondiam: – Retornará nos calores de verão. Vem cantar conosco. – Mas o senhor do Jângal volta para os homens, repetia. – E daí! O tempo das falas novas perde alguma coisa com isso? Desse modo, quando Mowgly, de coração pesado chegou à Roca, onde anos atrás fora trazido ao conselho, apenas encontrou lobos irmãos, Baloo, que já estava quase cego e a pesada Kaa enrodilhada sobre a pedra de Akelá, ainda vaga.

– Termina então aqui o teu caminho, homenzinho? Perguntou a serpente, logo que Mowgly se sentou. Grita o teu grito! Somos do mesmo sangue, eu e tu, homens e serpentes!

– Porque não morri nas garras dos dholes, gemeu Mowgly. Minha força esvaiu- se e não foi veneno. Dia e noite ouço um passo duplo no meu caminho. Quando volto à cabeça sinto que alguém se esconde atrás de mim. Procuro por toda parte atrás dos troncos, atrás das pedras, e não encontro ninguém. Chamo e não tenho resposta, mas sinto que alguém me ouve e se guarda de responder. Se me deito, não consigo descanso. Corria corrida da primavera e não sosseguei.

Continua...

Nota: - “É difícil trocar a pele”, disse Kaa [a serpente], enquanto Mogli soluçava e soluçava com sua cabeça no dorso do urso cego, e com os braços ao redor do seu pescoço, enquanto Balu tentava debilmente lamber seus pés. - Parte II do Conto A Embriaguez da Primavera do Livro da Selva. Amanhã a Parte III. A última.