sexta-feira, 28 de julho de 2017

A embriaguez da primavera. Parte III.


A embriaguez da primavera.
Parte III.

-"O amanhã é nosso. Somos do mesmo sangue, tu e eu... Boa caçada!" Disse Kaa... - As estrelas desmaiam, concluiu o Lobo Gris, de olhos erguidos para o céu. Onde me aninharei amanhã? Porque dora em diante os caminhos são novos”.

– Porque não morri nas garras dos dholes, gemeu Mowgly. Minha força esvaiu-se e não foi veneno. Dia e noite ouço um passo duplo no meu caminho. Quando volto à cabeça sinto que alguém se esconde atrás de mim. Procuro por toda parte atrás dos troncos, atrás das pedras, e não encontro ninguém. Chamo e não tenho resposta, mas sinto que alguém me ouve e se guarda de responder. Se me deito, não consigo descanso. Corria corrida da primavera e não sosseguei.

Banho-me e não me refresco. O caçar enfada-me. A flor vermelha está a ferver em meu sangue. Meus ossos viraram água. Não sei o que... – Para que falar? Observou Baloo. Akelá disse que Mowgly levaria Mowgly para a alcateia dos homens outra vez. Também eu o disse, mas que ouve Baloo? Bagheera, onde está Bagheera esta noite? Ela também sabe disso, é da lei.

– Quando nos encontramos nas Tocas Frias, homenzinho, eu já o sabia, acrescentou Kaa. Homem vai para homens, embora o Jângal não o expulse. – A Jângal não me expulsa, então? Sussurrou Mowgly. O irmão Gris e os outros três uivaram furiosamente: – Enquanto vivermos ninguém ousará...

Mas Baloo interrompeu: – Eu ensinei-lhe a lei, disse. A mim cabe falar, embora meus olhos não vejam a pedra que está perto, enxergam tudo que está longe. Rãzinha toma teu trilho, faz teu ninho com esposa do teu próprio sangue e de tua raça; mas quando necessitares pata, olho ou dente, lembra-te, senhor do Jângal, que todo o Jângal acudirá o teu apelo. – Também o Jângal médio estará contigo, disse Kaa. Falo por um povo muito numeroso.

– Ai de mim! Exclamou Mowgly em soluços. Eu não sei o que sei! Não vou, não vou, não quero ir, mas sinto-me arrastado por ambos os pés. Como poderei deixar de viver estas noites do Jângal? – Ergue os olhos, irmãozinho, disse Baloo. Não há mal nisso. Quando o mel está comido, abandonamos os favos. – Depois que soltamos a pele velha, não podemos vestir de novo, ajuntou Kaa. É da lei.

– Ouve querido de todos nós, disse Baloo. Não há aqui, nem haverá palavra que te detenha entre nós. Ergue os olhos! Quem ousará interpelar o senhor do Jângal? Eu te vi brincando no pedregulho, lá embaixo, quando não passava de pequenina rã; e Bagheera, que te comprou pelo preço de um touro gordo, viu-te também. Daquela noite do “Olhai, olhai bem ó lobos!”, só ela e eu restamos de testemunhas; Raksha, tua mãe adotiva, está morta, teu pai adotivo está morto; a velha alcateia daquele tempo não existe; tu sabes o fim que teve Shere-Kahn e viste Akelá acabar entre os dholes, que nos teriam destruído se não fosses tu. Só vejo ossos, velhos ossos.

Hoje não é o filhote de homem que pede licença a sua Alcateia, é o senhor do Jângal que resolve mudar de caminho. Quem pedirá contas ao homem do que ele quer ou faz?

– Bagheera e o touro que me comprou! Respondeu Mowgly. Eu jamais... Suas palavras foram interrompidas por um rumor nas moitas próximas. Lépida, forte e terrível como sempre, Bagheera acabava de saltar para dentro do grupo. – Pelo que acabas de dizer, disse ela, estirando o corpo, não vim. Andei em caçada longa, mas agora ele está morto na relva, um touro de dois anos, o touro que te vai libertar irmãozinho!

Todas as dívidas assim ficam pagas. Além disso, minha palavra é a palavra de Baloo. A pantera lambeu os pés de Mowgly. – Lembra-te que Bagheera te ama, disse ela por fim, retirando-se num salto. No sopé da colina entreparou e gritou: Boas caçadas em teu novo caminho, senhor da Jângal! Lembra-te sempre que Bagheera te ama.

– Tu a ouviste, murmurou Baloo. Nada mais há a dizer. Vai agora, mas antes vem a mim. Vem a mim, ó sábia rãzinha!

– É difícil arrancar a pele, murmurou Kaa, enquanto Mowgly rompia em soluços com a cabeça junto ao coração de urso cego, que tentava lamber-lhe os pés.

– As estrelas desmaiam, concluiu o lobo Gris, de olhos erguidos para o céu. Onde me aninharei doravante? Porque agora os caminhos são novos...


FIM

Nota final: -  E Mowgly chega à idade adulta. Quase todos os que conheciam na selva já estão mortos. Os que sobraram estão pouco se importando com sua crise existencial, já que é primavera e todos estão ocupados com seus afazeres. Entediado, deprimido e irrequieto, Mowgly vaga pela floresta sem saber o que lhe acomete. Quer conhecer mais? - Não esqueça, o Livro da Selva é o livro de cabeceira dos chefes de lobinhos. E segunda feira próxima peça o BLOCO 27 Lobinhos em ação II com estas três partes da Embriaguez da primavera e de novas aventuras de Mowgly o Menino da Selva no meu e-mail.