A embriaguez da primavera.
Parte III.
-"O amanhã é nosso. Somos do mesmo sangue, tu e eu... Boa
caçada!" Disse Kaa... - As estrelas desmaiam, concluiu o Lobo Gris, de
olhos erguidos para o céu. Onde me aninharei amanhã? Porque dora em diante os
caminhos são novos”.
– Porque não morri nas garras dos dholes, gemeu Mowgly. Minha
força esvaiu-se e não foi veneno. Dia e noite ouço um passo duplo no meu
caminho. Quando volto à cabeça sinto que alguém se esconde atrás de mim.
Procuro por toda parte atrás dos troncos, atrás das pedras, e não encontro ninguém.
Chamo e não tenho resposta, mas sinto que alguém me ouve e se guarda de
responder. Se me deito, não consigo descanso. Corria corrida da primavera e não
sosseguei.
Banho-me e não me refresco. O caçar enfada-me. A flor vermelha
está a ferver em meu sangue. Meus ossos viraram água. Não sei o que... – Para
que falar? Observou Baloo. Akelá disse que Mowgly levaria Mowgly para a
alcateia dos homens outra vez. Também eu o disse, mas que ouve Baloo? Bagheera,
onde está Bagheera esta noite? Ela também sabe disso, é da lei.
– Quando nos encontramos nas Tocas Frias, homenzinho, eu já o
sabia, acrescentou Kaa. Homem vai para homens, embora o Jângal não o expulse. –
A Jângal não me expulsa, então? Sussurrou Mowgly. O irmão Gris e os outros três
uivaram furiosamente: – Enquanto vivermos ninguém ousará...
Mas Baloo interrompeu: – Eu ensinei-lhe a lei, disse. A mim cabe
falar, embora meus olhos não vejam a pedra que está perto, enxergam tudo que
está longe. Rãzinha toma teu trilho, faz teu ninho com esposa do teu próprio
sangue e de tua raça; mas quando necessitares pata, olho ou dente, lembra-te,
senhor do Jângal, que todo o Jângal acudirá o teu apelo. – Também o Jângal
médio estará contigo, disse Kaa. Falo por um povo muito numeroso.
– Ai de mim! Exclamou Mowgly em soluços. Eu não sei o que sei!
Não vou, não vou, não quero ir, mas sinto-me arrastado por ambos os pés. Como
poderei deixar de viver estas noites do Jângal? – Ergue os olhos, irmãozinho,
disse Baloo. Não há mal nisso. Quando o mel está comido, abandonamos os favos.
– Depois que soltamos a pele velha, não podemos vestir de novo, ajuntou Kaa. É
da lei.
– Ouve querido de todos nós, disse Baloo. Não há aqui, nem
haverá palavra que te detenha entre nós. Ergue os olhos! Quem ousará interpelar
o senhor do Jângal? Eu te vi brincando no pedregulho, lá embaixo, quando não
passava de pequenina rã; e Bagheera, que te comprou pelo preço de um touro
gordo, viu-te também. Daquela noite do “Olhai, olhai bem ó lobos!”, só ela e eu
restamos de testemunhas; Raksha, tua mãe adotiva, está morta, teu pai adotivo
está morto; a velha alcateia daquele tempo não existe; tu sabes o fim que teve
Shere-Kahn e viste Akelá acabar entre os dholes, que nos teriam destruído se
não fosses tu. Só vejo ossos, velhos ossos.
Hoje não é o filhote de homem que pede licença a sua Alcateia, é
o senhor do Jângal que resolve mudar de caminho. Quem pedirá contas ao homem do
que ele quer ou faz?
– Bagheera e o touro que me comprou! Respondeu Mowgly. Eu
jamais... Suas palavras foram interrompidas por um rumor nas moitas próximas.
Lépida, forte e terrível como sempre, Bagheera acabava de saltar para dentro do
grupo. – Pelo que acabas de dizer, disse ela, estirando o corpo, não vim. Andei
em caçada longa, mas agora ele está morto na relva, um touro de dois anos, o
touro que te vai libertar irmãozinho!
Todas as dívidas assim ficam pagas. Além disso, minha palavra é
a palavra de Baloo. A pantera lambeu os pés de Mowgly. – Lembra-te que Bagheera
te ama, disse ela por fim, retirando-se num salto. No sopé da colina entreparou
e gritou: Boas caçadas em teu novo caminho, senhor da Jângal! Lembra-te sempre
que Bagheera te ama.
– Tu a ouviste, murmurou Baloo. Nada mais há a dizer. Vai agora,
mas antes vem a mim. Vem a mim, ó sábia rãzinha!
– É difícil arrancar a pele, murmurou Kaa,
enquanto Mowgly rompia em soluços com a cabeça junto ao coração de urso cego,
que tentava lamber-lhe os pés.
– As estrelas desmaiam, concluiu o lobo Gris, de olhos erguidos para o céu. Onde me aninharei doravante? Porque agora os caminhos são novos...
FIM
Nota final: - E Mowgly chega à idade adulta. Quase todos os que conheciam na selva já
estão mortos. Os que sobraram estão pouco se importando com sua crise
existencial, já que é primavera e todos estão ocupados com seus afazeres.
Entediado, deprimido e irrequieto, Mowgly vaga pela floresta sem saber o que
lhe acomete. Quer conhecer mais? - Não esqueça, o Livro da Selva é o livro de
cabeceira dos chefes de lobinhos. E segunda feira próxima peça o BLOCO 27
Lobinhos em ação II com estas três partes da Embriaguez da primavera e de novas
aventuras de Mowgly o Menino da Selva no meu e-mail.