sexta-feira, 24 de julho de 2015

Um sapato chamado Vulcabrás!


Crônicas de um chefe Escoteiro.
Um sapato chamado Vulcabrás!

            Eu estava com doze anos quando ele surgiu. Meu último sapato comum sofreu uma pane na subida do Morro do Papagaio. Josias o sapateiro me disse que não dava mais meia sola. Eu não tinha outro. Sempre o mesmo para andar pela cidade, ir à reunião a missa namorar (de longe) acampar e passear com amigos. Ainda não havia as famosas sandálias havaianas que dois anos depois surgiram fazendo um grande sucesso. Era só para ricos que podiam importar da capital e pagavam uma nota preta. Tênis? Nem pensar. Nem se sabia o que era isto pelo menos para nos de uma cidade que pouco falava com o mundo. Conversei com meu pai, ele me olhou com aqueles olhos que me explicavam tudo. - Vamos ver filho, vamos ver. Vou entregar uma sela no sábado e se o Seu Joviano me pagar à vista pelo menos a metade posso lhe dar para comprar seu sapato novo. Meu pai era um grande sujeito, eu sabia que ele queria tudo de bom para nós eu e minhas duas irmãs, mas a luta pela vida era incessante. Primeiro a alimentação e depois o supérfluo. Sapato não era, mas naquela hora entrava na lista.

                     Andava com meu Velho sapato com um pedaço da sola solta amarrada com uma cordinha fina. Nem pregar dava. Lembro-me do barulho que fazia plec, plec quando esbarrava no chão. Ainda bem que no Cerimonial de Bandeira, na Inspeção e oração a gente permanecia em posição de sentido ou descansar. Os jogos de corrida eu tirava o sapato e ficava descalço. Sabia que era por pouco tempo. Já tinha juntado uma pequena quantia para comprar um canivete para mim. Tinha visto um nas Casas Abil e me encantei com ele. Levi me disse que era suíço. Bem ele ficaria para outra ocasião. Era assim no passado a gente saia da escola, passava a mão na caixa de engraxate e saia para ganhar uns tostões. Foi assim que comprei meu uniforme completo, meu cantil, minha faca, minha bússola e meu chapéu. Faltava o canivete. Agora era a vez de um sapato novo. Consegui duas semanas depois o que faltava. Meu pai me acompanhou até a Loja de Calçados do Seu Tinoco.

                      Foi ele quem nos mostrou a novidade. – Seu Totim (meu pai) chegou um novo tipo que dizem durar mais de vinte anos! Olhei para ele espantado. Vinte? Isto mesmo Vado, se chama Vulcabrás. Quer ver? Ele trouxe dois pares um marrom e um preto. Eram bonitos, nada de extraordinário. Será que era isto mesmo a duração? Custa um pouco mais caro que os outros, mas vejam o solado, é feito de borracha vindo do Amazonas. Não tínhamos todo o dinheiro, mas seu Tinoco disse que poderíamos pagar o saldo em trinta dias. O levei na caixa. (sem a caixa a tínhamos descontos) Amei a primeira vista. Calçava 36 na época (hoje calço 38). Nada como uma boa engraxada para deixar o coro no ponto. Fiz isto seis vezes em um só dia! O bicho ficou tinindo de rosca. Lindo, brilhante. Era como o Chefe dizia: - Um Escoteiro está sempre bem apresentado, do calçado ao chapéu. Na reunião todos queriam ver o tal Vulcabrás, souberam que ele durava vinte anos! Ninguem acreditava. Serviu como uma luva, mas duas semanas depois fomos acampar em Serra Vermelha. Doze quilômetros empurrando a carrocinha e o danado me mordeu o calcanhar e o dedão. Não foi fácil ficar descalço no acampamento, mas fiquei.

                       A gente levava à graxa e a escova para o acampamento. Nas inspeções não serviam desculpas que choveu, tem barro e a poeira não deixou ficar limpo. Um sapato sujo era nota menor e nenhuma patrulha perdoava um Escoteiro que tirasse nota baixa. Para isto sabíamos lavar e passar a moda escoteira no sol quente. Meu Vulcabrás foi um grande companheiro. Acompanhou-me por muitos anos na minha vida escoteira. Fomos longe eu e ele. Andávamos a pé de ônibus, de trem e no meu cavalo de aço (bicicleta). Se tempo valesse todos os anos ele devia receber junto comigo uma estrela de metal de um ano de atividade. Um dia levantei e faltou um pé. Sabia que não eram meus companheiros de patrulha, eles nunca fariam este tipo de brincadeira. Todos saíram à procura do pé direito do meu Vulcabrás. O encontramos na boca de Jacaré, pequeno, não mais que uns sessenta centímetros próximo à lagoa querendo engolir e ficou preso na sua garganta.

                         Depois que o retiramos tive que lavá-lo, por para secar e dar uma boa graxa. Afinal brincava que ele foi batizado e já podia fazer a promessa. Seis meses depois que comprei o sapato fui orgulhoso nas Casas Abil comprar meu canivete Suíço. Não tinha mais. Que tristeza! Levi me garantiu que em três meses chegaria uma nova remessa. Para quem esperou tanto tempo mais uns meses não ia fazer a diferença. Em menos de dois anos toda a Tropa escoteira, os lobos e os seniores usavam o Vulcabrás. Era o sapato do momento, o sapato dos escoteiros podia-se dizer. Seis anos depois entrando nos meus dezoito e quando recebi meu primeiro soldo na Construtora Techint onde trabalhava como anotador, comprei um marrom. Usei por vários anos e até casei com ele cinco anos mais tarde. Fez muito sucesso naquela época a marca Vulcabrás. Claro que depois de um tempo era considerado sapato de pobre, rico não usava mais. Precisavam mostrar que tinham vários calçados, bico fino, bico chato e aqueles com presilha de ouro. E os tais italianos?

                         Não sei se existe ainda a fábrica Vulcabrás. Faz anos que não o uso mais. Hoje em dia eles não teriam vez com a escoteirada. Os tênis tomaram seu lugar e as escolhas são diversas. Disseram-me que existem alguns de mais de dois mil reais. Madre Mia. Haja dinheiro, mas quem pode, pode e quem não pode se sacode, não é assim que se diz? Fui uma vez Chefe de um grupo onde os tênis já tinham voz e voto. Ninguem usava com o uniforme tênis que não fosse preto. Questão de costume, de apresentação pessoal, coisas de um Escoteiro que tem orgulho do seu uniforme. Depois ninguém ligava mais para isto. O que um calçado não podia fazer para significar um orgulho no uniforme Escoteiro. Mas acredito que hoje também os jovens se mantem firmes na sua apresentação pessoal. Antes éramos uma só alma um só coração. Ninguem queria ou podia ser diferente dos outros.


- Paulo Coelho disse: Podemos acreditar que tudo que a vida nos oferecerá no futuro é repetir o que fizemos ontem e hoje. Mas, se prestarmos atenção, vamos nos dar conta de que nenhum dia é igual a outro. Cada manhã traz uma benção escondida; uma benção que só serve para esse dia e que não se pode guardar nem desaproveitar. Se não usamos este milagre hoje, ele vai se perder. Este milagre está nos detalhes do cotidiano; é preciso viver cada minuto porque ali encontramos a saída de nossas confusões, a alegria de nossos bons momentos, a pista correta para a decisão que tomaremos. Nunca podemos deixar que cada dia se pareça igual ao anterior porque todos os dias são diferentes, porque estamos em constante processo de mudança.