Crônicas de um chefe Escoteiro.
Um sapato chamado Vulcabrás!
Eu estava com doze
anos quando ele surgiu. Meu último sapato comum sofreu uma pane na subida do Morro
do Papagaio. Josias o sapateiro me disse que não dava mais meia sola. Eu não
tinha outro. Sempre o mesmo para andar pela cidade, ir à reunião a missa
namorar (de longe) acampar e passear com amigos. Ainda não havia as famosas
sandálias havaianas que dois anos depois surgiram fazendo um grande sucesso.
Era só para ricos que podiam importar da capital e pagavam uma nota preta.
Tênis? Nem pensar. Nem se sabia o que era isto pelo menos para nos de uma
cidade que pouco falava com o mundo. Conversei com meu pai, ele me olhou com
aqueles olhos que me explicavam tudo. - Vamos ver filho, vamos ver. Vou
entregar uma sela no sábado e se o Seu Joviano me pagar à vista pelo menos a
metade posso lhe dar para comprar seu sapato novo. Meu pai era um grande
sujeito, eu sabia que ele queria tudo de bom para nós eu e minhas duas irmãs,
mas a luta pela vida era incessante. Primeiro a alimentação e depois o
supérfluo. Sapato não era, mas naquela hora entrava na lista.
Andava com
meu Velho sapato com um pedaço da sola solta amarrada com uma cordinha fina.
Nem pregar dava. Lembro-me do barulho que fazia plec, plec quando esbarrava no
chão. Ainda bem que no Cerimonial de Bandeira, na Inspeção e oração a gente
permanecia em posição de sentido ou descansar. Os jogos de corrida eu tirava o
sapato e ficava descalço. Sabia que era por pouco tempo. Já tinha juntado uma
pequena quantia para comprar um canivete para mim. Tinha visto um nas Casas
Abil e me encantei com ele. Levi me disse que era suíço. Bem ele ficaria para
outra ocasião. Era assim no passado a gente saia da escola, passava a mão na caixa
de engraxate e saia para ganhar uns tostões. Foi assim que comprei meu uniforme
completo, meu cantil, minha faca, minha bússola e meu chapéu. Faltava o
canivete. Agora era a vez de um sapato novo. Consegui duas semanas depois o que
faltava. Meu pai me acompanhou até a Loja de Calçados do Seu Tinoco.
Foi ele
quem nos mostrou a novidade. – Seu Totim (meu pai) chegou um novo tipo que
dizem durar mais de vinte anos! Olhei para ele espantado. Vinte? Isto mesmo
Vado, se chama Vulcabrás. Quer ver? Ele trouxe dois pares um marrom e um preto.
Eram bonitos, nada de extraordinário. Será que era isto mesmo a duração? Custa
um pouco mais caro que os outros, mas vejam o solado, é feito de borracha vindo
do Amazonas. Não tínhamos todo o dinheiro, mas seu Tinoco disse que poderíamos
pagar o saldo em trinta dias. O levei na caixa. (sem a caixa a tínhamos
descontos) Amei a primeira vista. Calçava 36 na época (hoje calço 38). Nada
como uma boa engraxada para deixar o coro no ponto. Fiz isto seis vezes em um
só dia! O bicho ficou tinindo de rosca. Lindo, brilhante. Era como o Chefe
dizia: - Um Escoteiro está sempre bem apresentado, do calçado ao chapéu. Na
reunião todos queriam ver o tal Vulcabrás, souberam que ele durava vinte anos!
Ninguem acreditava. Serviu como uma luva, mas duas semanas depois fomos acampar
em Serra Vermelha. Doze quilômetros empurrando a carrocinha e o danado me
mordeu o calcanhar e o dedão. Não foi fácil ficar descalço no acampamento, mas
fiquei.
A gente
levava à graxa e a escova para o acampamento. Nas inspeções não serviam
desculpas que choveu, tem barro e a poeira não deixou ficar limpo. Um sapato
sujo era nota menor e nenhuma patrulha perdoava um Escoteiro que tirasse nota
baixa. Para isto sabíamos lavar e passar a moda escoteira no sol quente. Meu
Vulcabrás foi um grande companheiro. Acompanhou-me por muitos anos na minha
vida escoteira. Fomos longe eu e ele. Andávamos a pé de ônibus, de trem e no
meu cavalo de aço (bicicleta). Se tempo valesse todos os anos ele devia receber
junto comigo uma estrela de metal de um ano de atividade. Um dia levantei e
faltou um pé. Sabia que não eram meus companheiros de patrulha, eles nunca
fariam este tipo de brincadeira. Todos saíram à procura do pé direito do meu
Vulcabrás. O encontramos na boca de Jacaré, pequeno, não mais que uns sessenta
centímetros próximo à lagoa querendo engolir e ficou preso na sua garganta.
Depois
que o retiramos tive que lavá-lo, por para secar e dar uma boa graxa. Afinal
brincava que ele foi batizado e já podia fazer a promessa. Seis meses depois
que comprei o sapato fui orgulhoso nas Casas Abil comprar meu canivete Suíço.
Não tinha mais. Que tristeza! Levi me garantiu que em três meses chegaria uma
nova remessa. Para quem esperou tanto tempo mais uns meses não ia fazer a
diferença. Em menos de dois anos toda a Tropa escoteira, os lobos e os seniores
usavam o Vulcabrás. Era o sapato do momento, o sapato dos escoteiros podia-se
dizer. Seis anos depois entrando nos meus dezoito e quando recebi meu primeiro
soldo na Construtora Techint onde trabalhava como anotador, comprei um marrom.
Usei por vários anos e até casei com ele cinco anos mais tarde. Fez muito
sucesso naquela época a marca Vulcabrás. Claro que depois de um tempo era
considerado sapato de pobre, rico não usava mais. Precisavam mostrar que tinham
vários calçados, bico fino, bico chato e aqueles com presilha de ouro. E os
tais italianos?
Não sei
se existe ainda a fábrica Vulcabrás. Faz anos que não o uso mais. Hoje em dia
eles não teriam vez com a escoteirada. Os tênis tomaram seu lugar e as escolhas
são diversas. Disseram-me que existem alguns de mais de dois mil reais. Madre
Mia. Haja dinheiro, mas quem pode, pode e quem não pode se sacode, não é assim
que se diz? Fui uma vez Chefe de um grupo onde os tênis já tinham voz e voto.
Ninguem usava com o uniforme tênis que não fosse preto. Questão de costume, de
apresentação pessoal, coisas de um Escoteiro que tem orgulho do seu uniforme. Depois
ninguém ligava mais para isto. O que um calçado não podia fazer para significar
um orgulho no uniforme Escoteiro. Mas acredito que hoje também os jovens se
mantem firmes na sua apresentação pessoal. Antes éramos uma só alma um só
coração. Ninguem queria ou podia ser diferente dos outros.
- Paulo Coelho disse: Podemos acreditar
que tudo que a vida nos oferecerá no futuro é repetir o que fizemos ontem e
hoje. Mas, se prestarmos atenção, vamos nos dar conta de que nenhum dia é igual
a outro. Cada manhã traz uma benção escondida; uma benção que só serve para
esse dia e que não se pode guardar nem desaproveitar. Se não usamos este
milagre hoje, ele vai se perder. Este milagre está nos detalhes do cotidiano; é
preciso viver cada minuto porque ali encontramos a saída de nossas confusões, a
alegria de nossos bons momentos, a pista correta para a decisão que tomaremos.
Nunca podemos deixar que cada dia se pareça igual ao anterior porque todos os
dias são diferentes, porque estamos em constante processo de mudança.